SINOPSE | Unidos do Viradouro 2021: Não há tristeza que possa suportar tanta alegria!

by - dezembro 13, 2020

 



"Depois da energia elétrica, da energia atômica,
Só uma terceira energia chamada alegria
Poderia realizar grandes eventos."
(A genialidade profética de João Jorge Trinta)


Corações à espera:
– Que será do carnaval?, questionam os sambistas na festa da penha, no oito de dezembro de 1918, séc. XX.

  David Butter, jornalista e pesquisador do carnaval, descreve:

"à época, a festa da penha era um terreno de teste para canções, onde se esbarravam figuras das sociedades, dos ranchos, dos blocos e da incipiente música popular brasileira. Para lá, mudava-se por alguns dias, a pequena África, com as tias baianas e suas barracas."

  O matinal o Paiz, em 03 de março de 1919, descreve:
"O carnaval não morreu. Vingou-se gloriosamente das restrições que o passado lhe impôs na guerra e prestou um ótimo serviço de fazer escurecer a visita macabra da ´espanhola`."

  Extinta a dor da primeira guerra mundial. Asfixiada a gripe espanhola.
  Findo o ano de 1918.
  1919.

"E o mundo não se acabou."
(O carnaval de 1919 foi uma das inspirações para o compositor Assis valente – Música eternizada na voz inesquecível de Carmem Miranda).


Os cronistas dos principais jornais da cidade assinam como pierrot as notícias matinais que prenunciam a chegada do carnaval. No jornal o malho, a charge do cartunista hélios seelinger revela em nanquim traços de saudosos foliões esquecidos do imaginário popular. Momo deixa de ser tratado como rei, é elevado aos céus para ser glorificado como deus, no dia 1º de março de 1919.

Confino a tristeza, me despeço das trevas. Rompo o isolamento de uma infinda solidão. Calçadas testemunham passos contidos, janelas se entreabrem. Inebrio-me com os ares do marca-meu-coração. A casa das fazendas pretas retira os fardos de um luto elegante, que vestiu a dor dos últimos tempos – em seu lugar o lume dos brocados, das rendas e cetins. Entrelaço o olhar nas fitas métricas da boutique le France, recebendo os primeiros foliões. Céu desenhado por varais de ventarolas da casa buis, na rua do ouvidor. A nova dama do cabaré se faz presente nas esquinas da avenida Mem de Sá, seguindo o legado da cafetina Alice Cavalo de Pau, dizimada pela gripe. Sou um pierrot em recesso das redações de jornais. Faço parte da nata da sociedade que se prepara para o último baile pré-carnavalesco do clube dos democráticos. Evoco a vingança da vida!


"…assim é que é, viva a folia!
Viva momo, viva a troça!
Não há tristeza que possa suportar tanta alegria."
(Canção de baile do pré-carnaval dos democráticos, autor desconhecido, 1919).


O carioca instaura a desforra da peste na primeira manhã de um carnaval. Ensaio um canto a contemplar a concentração dos préstitos das grandes sociedades: a barca da vitória, do clube dos Democráticos; a hespanhola, do Tenentes do diabo e o icônico chá da meia-noite, dos Fenianos. Parto no bonde da vingança para a praça da república, conduzido pelo popular jamanta – desvairado folião a retomar a nossa delirante fantasia de viver, levada por espíritos revoltosos. Esbarro nas cocotas emplumadas e me embriago num ardente xarope de calibrina. Desfaço a melancolia de uma face mal-ajambrada, que revela o sorriso envolto à alegria do bloco carões mascarados.

Nas ondas da avenida beira-mar, dou cor à angústia em folhas de papel crepom. Contemplo corsos engarrafados de flertes e melindrosas. Autos que figuram deusas ávidas, despertando o olhar sensual do jovem Nelson Rodrigues. Bandas marciais fanfarram por coretos e boulevards ao denotarem o traço art decò de J. Carlos. Numa das esquinas da Rio Branco, de um bar, exclama um folião: – chegou o caveirinha! Mestre que driblou a morte a desfraldar seu pavilhão, no primeiro desfile do cordão da bola preta. Peço exílio a milhares de corações aglomerados no bloco do eu sozinho – cortejo que rendeu ao folião Júlio Silva, 53 memoráveis carnavais. Nas matinês, o moleque mestiço com chapéu de jornal tico-tico, em que retrato o rio em palavras e desenhos. O beijo na serpentina declara um amor que se desdobra nas batalhas de flores da avenida central.

Reside em mim a eterna fantasia de um palco reanimado. Pernaltas vibram cornetas, que prenunciam os bilhetes dos grandes bailes de clubes e theatros. Escadarias conferem um refinado bailado, sacadas preenchem vivências que revelam a fúria de uma metrópole em festa. Orquestras animam valsas, dando um baile em qualquer tristeza. Bombons adoçam sentimentos. Na luz da ribalta, o equilíbrio dos artistas do circo american-france. Figuras macabras de um salão (diabinhos, morcegos, bruxas) curvam-se à sombra de aplausos aos heróis da cruz vermelha. Descortino lembranças heroicas de vestes bordadas por sagradas mãos do caldeirão da praça onze.

O  carnaval é do corpo e o samba é de alma preta. Na pequena África, reverencio as tias curandeiras que extirparam o mal da gripe de centenas de baianos e mestiços. Borboletas negras clamam a transformação para uma sociedade igualitária. Guerreiros paladinos empunham lanças tribais pela legitimidade do samba – que se faz o principal gênero musical do carnaval. O folclórico grupo caxangá, de João Pernambuco, germina a criação dos oito batutas. Entraram Donga, China e Pixinguinha – a primeira linhagem de sambistas. O lenço negro caído dos sobrados dá lugar ao colorido de estandartes dos ranchos. Evoco o senhor da cura! Cubra-nos com suas palhas! Que teu xaxará afaste de vez todas as mazelas que vierem tocar os sambistas.

O único contágio possível? A alegria.

"A alegria estava entre nós,
Era dentro de nós que estava a alegria.
A profunda e silenciosa alegria."
("Sonhos de uma terça-feira gorda", de Manuel Bandeira).
 

Ar libertário na manhã de um último dia de carnaval. Um rio em transe, de almas cantantes, em uma catarse de alegria.  ´´desmascaro“ um rio que o próprio rio não conhecia – esperança para os dias atuais. Volto aos dias calorosos, dos abraços afetuosos como todo carioca preza. Corpos que se transpassam, mãos que se unem nos reencontros familiares– folião-original a exorcizar toda saudade. Figuram tribos ébrias, corações perambulantes em estado de graça. Euforia que não derrubou a sabedoria dos foliões mais antigos a procurar, na quarta de cinzas, os seus. Pulsa no epicentro da capital, o destemidos do conselheiro, que clama revanche a se ouvir do outro lado da baía de Guanabara.

Aportam na enseada os revanchistas da cidade sorriso, lançados dos corredores da barca xix, Nictheroy-Rio. Alguns ensaiam um funambulesco banho de mar. Outros desembarcam sonhos de uma apoteótica travessia de balão. Sob um sol estridente, esvaíam-se cantoria adentro, embalados pelas composições do poeta barretense zé de matos. O rio de janeiro, memorável, desperta com a emoção que formaria, mais tarde, o chão da unidos do Viradouro.

Adormeço em meio aos últimos foliões resignados: eram trapeiros que carregavam palmos de confetes e serpentinas de uma troça sem fim. Quarenta toneladas de uma folia que teve papel histórico. Retomar a vida pela alegria no maior carnaval de todos os séculos.

"Na quarta-feira de cinzas,
O rio despertou convicto
De que vivera
O maior carnaval de sua história."
("Metrópole à beira-mar, o rio moderno dos anos 20", de Ruy Castro).


Estou me guardando para quando o carnaval chegar.
(Autoria enredo, texto) Marcus Ferreira e Tarcísio Zanon – carnavalescos

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