Carnavalizadores de Primeira: Antônio Candeia Filho - 85 anos do porta-voz da resistência
Texto: Leonardo Antan e Thomas Reis
Revisão: Beatriz Freire
1935. A Portela comemorava seu primeiro título no carnaval, realizado na Praça Onze. Meses depois, em agosto, nasceu Antônio Candeia Filho. Não à toa, o destino da azul e branco e do sambista se confundem e se completam. Importante não só para a agremiação de Madureira, o compositor se colocou no debate ante a transformação do samba e do carnaval. Contar a sua vida é atravessar boa parte das mudanças sociais e culturais que marcaram o século XX. Por isso, o Carnavalize presta suas homenagens a esse imenso personagem que chegou a ser comparado a Paulo da Portela, mas que, para além disso, pode-se dizer que foi o Zumbi da resistência carnavalesca, idealizando seu próprio Quilombo.
Candeia posa com seu visual inconfundível. Foto: Acervo O Globo. |
Foi no ainda rural bairro de Oswaldo Cruz que nasceu Antônio Candeia Filho, no dia 17 de agosto de 1935. A região estava sendo ocupada desde as reformas que mudaram o centro carioca, tornando-se um polo cultural efervescente. Filho de Dona Maria e Antônio Candeia, este um tipógrafo que tinha o samba pulsando em suas veias, exímio flautista, personagem fundamental para a formação musical do filho, mesmo que de maneira indireta.
Desde pequeno Candeia passou a frequentar pagodes e rodas de sambas, cresceu no meios dos bambas, o que impulsionou a precoce carreira de músico. Uma das maiores tristezas de sua vida foi não ter tido uma festa de aniversário tradicional, rodeado de crianças, com bolo e refrigerantes; todas as festividades em casa eram conduzidas por três elementos fundamentais: samba, feijoada e cachaça. Não tardou para o jovem ser figura recorrente nas festanças da casa de Dona Esther, lendária festeira da região. Lá, passou a ter contato íntimo com as manifestações culturais de raízes afro-brasileiras, como o samba e o jongo e o candomblé.
"Alumia meu caminho, Candeia"
Seu pai, Antônio Candeia, amigo de Paulo da Portela e integrante do bloco Vai Como Pode, esteve presente na Portela desde os primórdios de sua fundação. Foi também o idealizador das comissões de frente uniformizadas, sendo, graças a ele, a escola de Oswaldo Cruz a primeira a desfilar com um grupo de pessoas à frente do cortejo, representando a diretoria da escola, que apresentava todo o trabalho desenvolvido pela comunidade para chegar à Praça Onze. Apesar de estar envolvido com a escola, o velho Candeia não era exatamente um entusiasta ou grande incentivador da aproximação do filho com a Portela. Ainda muito garoto foi escondido pela primeira vez na sede da escola que se localizava ao lado do bar do Nozinho, irmão de Natal, e se encantou com aquele ambiente de terra batida, repleto de pessoas sambando e cantando. Partiu, então, de sua mãe o apoio para desfilar pela primeira vez com as cores águia altaneira, em 1950, fantasiado de mecânico, no auge dos seus quase 15 anos. Aqueles foram os primeiros passos de uma história que se eternizou.
Candeia, Waldir 59 e Darcy desfilando na Ala dos Impossíveis. |
A partir de então, o sambista se aproximou cada vez mais da escola: integrou a “turma do muro”, grupo de jovens moradores de Oswaldo Cruz que se reunia para compor samba no muro da estação de trem. Constituiu também a Ala dos Impossíveis, fundada por Wanderley Silva, famosa por suas inovações, considerada por muitos a responsável por introduzir o passo marcado em alas coreografadas. O sucesso das coreografias foi tamanho que Candeia, juntamente com Waldir 59 e Mazinho foram convidados para estrelarem um comercial da TV Tupi. Os jovens sambistas foram com intuito de divulgar suas qualidades coreográficas, mas acabaram passando por um enorme constrangimento ao serem colocados com trajes típico de povos indígenas para uma propaganda de ar condicionado. Racismo à parte, o grupo ganhou fama com suas apresentações no musical “Night and Day” de Carlos Machado.
Contudo, foi em 1953 que selou sua presença fundamental na agremiação, compondo seu primeiro samba. As bênçãos para a entrada na tradicional Ala dos Compositores foi concedida por Manacéa. Personagem fundamental da comunidade de Oswaldo Cruz e membro assíduo da Portela, ele via em Candeia a “chama da escola” e conferia ao ainda jovem sambista a confiança necessária e potencial enorme para dar continuidade ao celeiro de composições dos sambas imortais.
A carteirinha de compositor de Antonio Candeia Filho. |
O primeiro samba-enredo foi composto em parceria com Altair Prego, para o enredo “Seis datas magnas”, apresentando uma visão historiográfica do Brasil. As notas máximas foram alcançadas juntamente com o título que culminou em uma comemoração pra lá de polêmica do então Patrono Natal, que subiu a Serrinha empunhando um caixão nas cores da co-irmã, o Império Serrano (saiba mais aqui).
Já iniciado na ala e reconhecido pelos compositores veteranos, Candeia conquistou mais cinco títulos em concursos de samba-enredo na Portela. Dividiu as composições de 1955 (“Festas juninas em fevereiro”), 1956 (“Riquezas do Brasil”) e 1957 (“Legados de D. João VI”) com o grande amigo Waldir 59. Voltou a vencer em 1959 (“Brasil, panteão de glórias”), em parceria com Casquinha, Bubu, Picolino e o mesmo parceiro de sempre, Waldir. Seu último samba composto para a Portela foi em 1965, para o enredo (“História e tradição do Rio Quatrocentão”), em mais uma parceria com seu fiel companheiro. Em resumo, Candeia compôs seis sambas para a Majestade, dos quais três foram de carnavais campeões, duas segundas colocações e um terceiro lugar, um caminho louvável de um jovem que se tornou referência na composição de sambas-enredo de uma das mais tradicionais agremiações cariocas.
"Enquanto houver samba na veia/ Empunharei meu violão/ Sentado em trono de rei"
Para muitos negros, conseguir um cargo estável era uma das poucas formas de acesso a uma condição melhor de vida. Assim, nos idos de 1960, Candeia foi aprovado no concurso para a Polícia Civil, assumindo o cargo de detetive. Como tudo em sua vida, levou muito a sério o cumprimento de seu ofício, mas o caráter enérgico e truculento lhe concedeu a fama de ser um policial que não aliviava para ninguém. O tom severo se avolumava quando o problema era com a malandragem, em ocasiões nas quais chegou até mesmo a acabar com diversas rodas de samba e repreender Paulinho da Viola em um salão de sinuca. Sua postura o afastou de alguns amigos. Waldir 59, o companheiro de tantas composições, chegou a dizer que o sambista havia mudado muito, a ponto de fingir não conhecê-lo quando estava junto de outros policiais. Se por um lado a entrada na polícia prejudicou a relação com os amigos, por outro, a intimidade com o samba continuava a mesma.
Cada vez mais fortalecido na ala dos compositores da Portela, Candeia passou a dirigir o conjunto “Mensageiros do Samba” com Picolino da Portela, Arlindo, David do Pandeiro, Jorge, Bubu e Casquinha, inspirados pelo conjunto “Voz do Morro”, conduzido por Zé Keti. A ideia surgiu no bar Zicartola, onde se apresentaram diversas vezes, chegando a gravar um LP em 1964.
Candeia posa com a bandeira da Portela na Avenida dos desfiles. |
No mesmo ano em que assinou seu último samba pela azul e branca de Oswaldo Cruz, sofreu uma enorme reviravolta que alterou todas as suas concepções de vida. No dia 13 de dezembro de 1965, após uma noite de comemorações regadas a álcool, Candeia estava voltando para casa na companhia de Waldir 59 quando colidiu com um caminhão de peixes no final da Marquês de Sapucaí, sentido da Avenida Presidente Vargas. Foi ali que o partideiro seguiu o caminhão, forçando-o parar. Desceu de seu carro e esvaziou seu revólver nos pneus do caminhão. O companheiro do peixeiro desceu do caminhão e desferiu contra Candeia cinco tiros, dentre eles um que se alojou em sua medula óssea, ficando entre a vida e a morte nos braços do amigo Waldir.
Após o ocorrido, lutou pela vida durante dois anos. Entre hospitais e inundado pela falta de esperança por partes dos familiares, o forte homem resistiu, apesar de ter perdido os movimentos de suas pernas. Alocado em uma cadeira de rodas, aposentado da polícia por invalidez e afastado dos amigos, Candeia se afundou em depressão. Em meio a essa solidão e com tempo livre, encontrou em seu violão o caminho para ressurgir. Foi, então, imerso ao samba que ganhou vida um compositor da maior sensibilidade, equilíbrio e maturidade. As letras de seus sambas eram cada vez mais apuradas e passaram a refletir sua nova condição. Observando as mazelas da sociedade, utilizou de suas composições para resistir às descaracterizações impostas às culturas afro-brasileiras e defender a brasilidade do samba.
“Não basta ter inspiração / Pra cantar samba se precisa muito mais”
Durante a década de 70, o samba explodiu como fenômeno de vendas e repercussão da indústria fonográfica. Grandes músicos do gênero conquistaram o topo das paradas de sucesso nas rádios e programas de TV. Já no exato ano de 1970, esse espaço já vinha sendo conquistado e grandes marcos do gênero foram lançados, como o primeiro LP da Velha Guarda da Portela. Foi quando Candeia também conseguiu emplacar seu primeiro álbum, cinco anos depois de seu acidente. O LP trazia na capa um jogo com as palavras “Autêntico, Samba, Original, Melodia, Portela, Brasil, Poesia”, sendo composto apenas por canções originais do artista. Entre as doze canções, somente duas parcerias com Casquinha e uma com Paulinho da Viola. Entre elas, estava “Dia de graça”, maior êxito da seleção musical que se tornou um clássico.
Candeia e Martinho da Vila se apresentam juntos na década de 1970. |
Ao longo dos anos, Candeia lançou ainda mais quatro álbuns. O segundo dele veio no ano seguinte, batizado de “Raiz”. Em 1975, Candeia concluiu seu terceiro LP individual, "Samba de roda", lançado pela Tapecar. Também naquele ano, participou da gravação do LP "Partido em 5"", o primeiro de uma série de três volumes dedicados ao partido-alto, estilo que se tornou uma das bandeiras do sambista. Entre 1973 a 1976, também foi um dos personagens do documentário homônimo de Leon Hirszman sobre o sub-gênero conhecido pela improvisação. Além das próprias gravações, suas músicas foram regravadas por inúmeros sambistas como Cartola (Preciso me encontrar), Beth Carvalho (Você, eu e a orgia), Clara Nunes (O mar serenou), Elza Soares e Martinho da Vila (A flor e o samba).
“Depois que o visual virou quesito, o samba perdeu sua pujança”
Não diferentes dos chamados “samba de meio de ano”, as escolas de samba também experimentaram um verdadeiro sucesso midiático que nunca tiveram antes. Era o resultado da “Revolução Salgueirense”, que aproximou definitivamente a classe média das agremiações e fez dos desfiles um produto espetacular e turístico, que repercutiu no Brasil e no Mundo. A contrapartida desse período tão importante foi justamente a chegada de artistas acadêmicos, criando uma relação de negociação que fez das escolas de sambas ainda maiores culturalmente, mas acirrou o debate entre “tradição X modernidade”, presente nas escolas de sambas desde seu surgimento.
Mesmo que não participasse mais das disputas de sambas da Portela, Candeia seguiu ativo na azul e branco. Mas seu descontentamento com os rumos que o carnaval tomava ficavam cada vez mais evidentes, sobretudo com a mudança de poder que houve na agremiação. A chegada de Carlinhos Maracanã, substituindo o lendário Natal, não deixou o clima agradável. O primeiro desentendimento aconteceu na preparação para o ano de 1972, quando Candeia sugeriu o enredo afro "Ilu Ayê – A terra da vida", em parceria com o cartunista Lan. A versão do sambista é que, já próximo da folia, Hiram Araújo chegou indicado pelo então presidente e passou a tratar a ideia como dele, assumindo o Departamento Cultural da Águia altaneira.
A águia do desfile portelense de 1972 que cantou a "Terra da Vida" em tradução livre. |
Seguindo a década, o ano de 1975 foi decisivo nessa história. Já em março, após o carnaval, Candeia se juntou a Paulinho da Viola, André Motta Lima, Carlos Monte e Cláudio Pinheiro para endereçar uma carta direta ao presidente da Majestade do Samba. O documento apresentava uma série de críticas dos sambistas, bem como várias sugestões para a aproximação da escola com o “povo” e o fim do autoritarismo do presidente. Dentre as proposições estavam a restrição do número de componentes a 2500 pessoas; proibição da entrada de novos compositores na ala dos compositores até que fossem abertas novas vagas, e proibição das torcidas organizadas nas escolhas de samba. As considerações foram solenemente ignoradas pela direção.
Meses depois, houve um novo episódio envolvendo, dessa vez, todas as agremiações cariocas. Em novembro de 1975, a Associação de Escolas de Samba firmou uma parceria com a Riotur, a empresa municipal de turismo fundada anos antes, aproximando ainda mais a folia de uma questão turística, pasta municipal a qual elas sempre estiveram submetidas historicamente. A ação consolidava o caráter negociador.
Entre a transformação latente do espetáculo, a consolidação de artistas ligado ao teatro e artes visuais, como Fernando Pinto (no Império Serrano) e Joãosinho Trinta (ainda no Salgueiro), além das transformações na estrutura do samba-enredo, que passava por um processo de dinamização com obras como “Festa para um rei negro” e “Alô, alô, taí Carmen Miranda”. Bem longe das Minas do Rei Salomão e da Vedete do Subúrbio, fundou-se então um Quilombo.
“Quilombo pesquisou suas raízes / E os momentos mais felizes de uma raça singular”
Para fora da Avenida, o momento era de valorização e discussão da negritude. O movimento Black norte-americano chegou em terras brasileiras, popularizando o soul e o funk, na voz de Tony Tornado. Os cabelos crespos e cacheados cresceram imponentes, mostrando seu verdadeiro poder. Os bailes reuniam as diversas matizes de preto, ampliando fortemente o debate racial num país fundado pela escravidão. Era um período ainda mais duro com a ditadura civil-militar em voga, fazendo assim surgir iniciativas como o Centro de Estudos Afro-Asiáticos e o Instituto Popular de Cultura Negra.
O brasão da GRANES Quilombo. |
Foi nesse cenário que nasceu o Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo, devidamente fundado em 8 de dezembro de 1975 pelos compositores Candeia, Neizinho, Wilson Moreira e Mestre Darcy do Jongo. Dentro da famosa máxima de Luiz Antonio Simas, a Quilombo existiu muito mais do que para desfilar apenas. Sua organização incluía uma verdadeira valorização e educação de preceitos afrocentrados. Aliada à questão dos rumos do próprio carnaval, a entidade cultural era um pólo de resistência também a uma conjuntura sociopolítica e econômica de falta de liberdade de expressão e de crise econômica.
A agremiação foi lançada com um verdadeiro manifesto que deixava claras as suas intenções. Até estava aberta a todos, mas não às imposições vindas de elementos externos, sobretudo dos chamados “profissionais” da folia. Nada de “artistas plásticos, figurinistas, coreógrafos, departamentos culturais”; não havia interesse em teses intelectuais e acadêmicas, e, sim, em representar o “povo”. O manifesto terminava evocando o carnaval espontâneo, ligado às origens. Sua proposta era de simplesmente resguardar a cultura negra.
Como um verdadeiro espaço de refúgio entre os bairros de Fazenda Botafogo e Acari, a agremiação promovia uma série de eventos e atividades culturais como forma de atrair a comunidade carioca. Festas, cursos, palestras sobre negritude, aulas de dança e teatro, exposições de artes visuais… uma programação intensa. Nos dias de folia, a escola nunca chegou a se filiar a qualquer liga oficial, variando seu desfile ao longo dos anos em que esteve em atividade.
Os desfiles da agremiação aconteceram no bairro de origem, mas ela foi convidada a participar do cortejo na Avenida Rio Branco, fechando os desfiles do carnaval sem cronometragem estipulada. A maneira como a Quilombo se apresentava também era um ponto de debate, recuperando o que se chamava de desfile mais “tradicional”. Assim, a bateria não fazia paradinhas nem desenhos rítmicos e devia estar entrosada com um samba-enredo melodioso e no tempo certo, o menos acelerado possível. Nada de coreografias e acrobacias para as passistas e o casal de mestre-sala e porta-bandeira.
Já o enredo era, obviamente, ligado às questões afro-brasileiras, a maioria desenvolvida pelo próprio Candeia. Narrativas com bom desenvolvimento e temas inéditos, bem pesquisados e que se materializassem claramente através das alegorias e fantasias deviam ser o mais simples possíveis, longe do luxo vigente. No primeiro ano, desfilou com o samba "Apoteose das mãos", de Mariozinho de Acari, Zeca Melodia e Gael, pessoas da comunidade. Nos dois anos seguintes, os sambas foram da dupla Wilson Moreira e Nei Lopes, autores de "Ao povo em forma de arte" e "Noventa anos de abolição”.
Entretanto, a criação da Quilombo não afastou completamente Candeia de sua azul e branco de Oswaldo Cruz, mesmo que participasse com menos frequência. Assim, quando a direção da escola precisava afirmar sua tradição, trazia de volta tanto o sambista como Paulinho da Viola. Foi o caso de 1978, quando ambos foram jurados do concurso de samba-enredo da Portela.
Além das atividades na escola de samba, uma das últimas contribuições de Candeia, para o entendimento desse fértil período social e cultural que colocava numa mesma encruzilhada “movimento negro X carnaval espetáculo”, foi o livro em “Escola de Samba, árvore que esqueceu a raiz”, de 1978. A obra seria, a princípio, em parceria com Paulinho da Viola, que acabou não conseguindo contribuir por falta de tempo. Quem dividiu a feitura da obra com o músico foi Isnard Araújo, cria de Madureira e que tocava um projeto chamado Museu Histórico Portelense, no qual colhia depoimentos dos componentes mais antigos da agremiação. Sua ideia inicial era fazer apostilas com o material gravado para serem distribuídas, mas Candeia propôs a publicação do livro em co-parceria. O livro não se limitou a colher depoimentos, mas também mapeou diversos cargos e funções dentro da uma escola de samba, fazendo um verdadeiro manifesto sobre o assunto e colocando mais mais lenha na discussão entre tradição e modernidade.
“A chama não se apagou/nem se apagará”
Em 1978, o enredo para o carnaval da GRANES Quilombo foi “Ao povo em forma de arte”, proposto por Rachel Trindade, filha do artista Solano Trindade. A escola de Candeia, a convite da RioTur, fechou o carnaval do centro da cidade embalada pelo samba de Wilson Moreira e Nei Lopes, como já dito, novatos na Quilombo. Foi uma grande euforia: o idealizador veio apresentando seus componentes naquele que seria seu último desfile. Em novembro daquele mesmo ano, o sambista foi internado em decorrência de um infecção generalizada no organismo. No fatídico dia 16 do referido mês, Candeia não resistiu a uma parada cardíaca e morreu aos 43 anos, jovem e, para muitos, no auge de sua carreira.
Clementina de Jesus e Antônio Candeia Filho no desfile da Quilombo. |
O grande partideiro deixou sementes que florescem até hoje, e a verdadeira “luz da imaginação” ganhou espaço nos desfiles de algumas escolas que cantaram suas glórias e seu papel fundamental para a cultura brasileira. Em 1981, apenas três anos após a sua partida, recebeu homenagens de uma escola bem longe do seu reduto: foi enredo da Nenê de Vila Matilde, com “Axé Sonho de Candeia”. Outra agremiação que cantou o sambista em seu desfile foi a Unidos do Jacarezinho, em 1986, com o enredo “Candeia, a luz que não se apaga”, desenvolvido por seu grande amigo Monarco e João Baptista Vargens, escritor de sua biografia. No ano de 2015, Candeia desfilou na Marquês de Sapucaí em mais uma condecoração realizada pela Renascer de Jacarepaguá (“Candeia! Manifesto ao povo em forma de arte!”), com um samba à altura do homenageado composto por ninguém menos que Moacyr Luz, Teresa Cristina e Claudio Russo.
"Axé! Candeia, axé!
A luz do quilombo no chão do terreiro
Axé! Irmão de fé!"
Pela sua querida Portela ainda não foi tema de enredo, mas seu nome figura dentre os mais diversos sambas da águia altaneira, fazendo-se presente pela última vez na homenagem que a azul e branco fez à grande cantora e amiga de Candeia, Clara Nunes, em 2019, no verso: “Candeia que ilumina o meu caminhar”. Em um dos momentos mais emocionantes da história do carnaval, Candeia esteve presente, não fisicamente, apesar de algumas pessoas que discordem da negativa. O episódio aconteceu em 1999, quando a Estação Primeira de Mangueira levou para a Sapucaí o enredo “O século do samba”, no qual homenageava os grandes nomes do gênero. Para tal, a comissão de frente, conduzida pelo coreógrafo Carlinhos de Jesus, levou para desfilar os imortais sambistas que já haviam partido, gerando extrema comoção em todo o público. Em especial, a filha de Candeia ficou estarrecida ao ver o “pai” se levantando da cadeira de rodas pela primeira vez.
A representação de Candeia e Clara Nunes na comissão da Mangueira em 1999. |
Para o carnaval de 2021, ainda que imerso nas incertezas ocasionadas pela pandemia da Covid-19, o Império da Tijuca anunciou seu enredo “Samba de Quilombo: a resistência pela raíz”, que prestará homenagem ao GRANES Quilombo. A luz de Candeia não se apaga, a prova disso foi o número recorde de 52 sambas inscritos para o concurso de samba-enredo da escola do Morro da Formiga.
Do samba de enredo ao partido-alto, do protesto ao lamento. Contrário aos rumos que as escolas de samba começaram tomar, com o afastamento de suas raízes negras e populares, assumiu a bandeira para si e lutou até o fim de sua vida por suas convicções. A luz desta “Candeia” alumiou muito mais que Oswaldo Cruz e Madureira, se espalhou como fagulha de re-existência e transformação. E permanece acesa guiando uma geração de artistas populares. Seu grito quilombola ainda precisa ecoar. Salve Candeia!
Referências Bibliográficas:
BUSCÁCIO, Gabriela Cordeiro. “A chama não se apagou”: Candeia e a Gran Quilombo - Movimentos Negros e Escolas de Samba no anos 70. 2005. 164 f. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal Fluminense, Programa de Pós-Graduação em História, 2015.
CABRAL, Sérgio. As escolas de samba do Rio de Janeiro. São Paulo: Lazuli Editora, 2011.
CANDEIA FILHO, Antonio; ARAÚJO, Isnard. Escola de Samba: árvore que esqueceu a raiz. Rio de Janeiro: Lidador, 1978.
CANDEIA a luz que não se apaga. Portela Web, 2017. Disponível em: <https://www.portelaweb.org/memoria/panteao-de-bambas/candeia>. Acesso em: 10 de jul. de 2020.
CUNHA, Ana Cláudia da. O quilombo de Candeia: Um teto para todos os sambistas. 2009. 124 f. Dissertação (Mestrado) - Fundação Getúlio Vargas - Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, Programa de Pós-Graduação em História e Bens Culturais, 2009.
SIMAS, Luiz Antonio. Tantas páginas belas: Histórias de Portela. Rio de Janeiro: Verso Brasil Editora, 2012.
TESI, Rômulo. Há 20 anos, Mangueira ‘trazia’ 14 bambas do céu e causava choro coletivo na Sapucaí. Setor 1 - Band/UOL, São Paulo, 2019. Disponível em: <https://setor1.band.uol.com.br/ha-20-anos-mangueira-trazia-do-ceu-14-bambas-e-causava-choro-coletivo-na-sapucai/amp/>. Acesso em: 16 de ago. de 2020.