#Quilombo: Batuque – a musicalidade das escolas de samba

by - agosto 15, 2020

O Quilombo do Samba é um coletivo negro de pesquisadores do carnaval brasileiro propondo uma discussão afrocentrada sobre a festa. Quinzenalmente aos sábados, suas reflexões vão ar aqui no Carnavalize.


por Osmar Filho e Vivian Pereira

Não há como se segurar quando a bateria de uma escola de samba começa a tocar. Quando uma bateria de escola de samba começa a tocar, o som invade a quadra ou a avenida e uma energia potente toma conta de tudo e todos. Energia. Som é energia, ondas mecânicas que se propagam deslocando ar. O homem africano descobriu esse fenômeno físico há milênios, com troncos de árvores recobertos com pele de animais, que produziam sons que utilizavam para a comunicação entre si e com os ancestrais. Se o som é energia, não só o ar vibra, produzindo ritmo, música, mas também as moléculas que formam os corpos humanos, levando ao transe e religando os corpos negros com seus ancestrais. O ritmo e o batuque, então, podem ter diferentes intencionalidades – das sacerdotais às recreativas. 

Autor: Osmar Filho.

Podemos dizer que na cultura africana o batuque assume três funções principais: comunicação, celebração e divinização. Todas as três funções interligadas, porque o som está intimamente ligado com o espírito. Essa relação som – espírito é uma forma de o homem se elevar e propagar vibrações, energia, comunicar-se com os irmãos e com seus ancestrais e celebrar a vida. Como diz o refrão do samba de 2014 do Império da Tijuca, vai tremer, o chão vai tremer. [...] Coisa de pele, batuque ancestral. A música criada em África foi propagada para todos os continentes, tanto na diáspora espontânea, quanto na forçada pela escravização moderna, criando diversas manifestações culturais. 

Em África, a música assume diversas finalidades, desde manifestar sentimentos até contar histórias. No Brasil, não é diferente. Além de expressarem suas tristezas e alegrias, também cantavam e batucavam em forma de protesto contra a escravização. Com seus batuques, clamavam aos orixás para que todos os males findassem e a liberdade fosse uma realidade. Esses cantos de protestos, cultos e rituais deram origem às batucadas no Brasil. Batucadas essas que são sagradas e profanas ao mesmo tempo. 

Dentre essas batucadas, temos o maracatu. A sua relação com o batuque foi contada este ano na avenida pela Sossego, com o enredo Tambores de Olokun. O maracatu é manifestação cultural negra e brasileira nascida em Pernambuco, que teria se originado a partir das cerimônias em que africanos angola-congoleses escravizados remontavam a coroação dos reis e das rainhas do Congo. O rei e a rainha escolhidos representariam os negros, sendo estes livres ou escravizados. No período de carnaval, os escravizados podiam sair para manifestar em público suas tradições e sua fé, celebrando a coroação da corte. O maracatu é reconhecido como uma prática cultural de negros, relacionado às religiões de terreiros (candomblé, jurema e umbanda), pois os escravizados colocavam no cortejo elementos religiosos – como os tambores, por exemplo. 

Autor: Osmar Filho.

Há pouco mais um século, os negros brasileiros transformaram o legado dos tambores ancestrais ainda presente nos terreiros de candomblé e umbanda em algo mais profano também, que pudesse expressar o transe do mesmo corpo nas ruas. E assim surge o samba. Mantendo o princípio básico da musicalidade africana, a percussão rítmica e a síncope no corpo, o samba aflorou um novo velho universo sonoro, sendo ele um legado ao mesmo tempo africano e diaspórico, negro e brasileiro. Se nos terreiros o batuque é sacralizado aos ancestres e orixás, nos 4 dias que temos para carnavalizar a vida esses corpos e vidas se unem como comunidade em várias vertentes e direções, sendo a bateria uma das mais importantes. 

As baterias e os cantores de samba-enredo são a versão profana do que fazem os ogans e alabes diante dos corpos sagrados incorporados por orixás, voduns e nkisis. As baterias tocam, no ritmo do samba, padrões rítmico-sonoros que evocam as forças da natureza presentes em cada um de nós. É impossível permanecer apático à temperatura vibracional de uma Furiosa, por exemplo. Não Existe nada Mais Quente que mais de 300 pessoas fazendo outras 85 mil acompanharem a mesma condução energética. Em torno da mesma energia tribal de aldeias Tabajaras e Invocadas batidas do coração de cada escola; tamborins de respeito que fazem o corpo chacoalhar, vibrar e emanar energia. 

O ritmo das baterias guarda a tradição religiosa das escolas de samba. Isso porque a maioria delas tem ligação forte com o candomblé. Os antigos dizem que os surdos de terceira (marcação) eram tocados apenas por ogans. Por isso, cada escola de samba era reconhecida ao longe pelo batuque de sua bateria, que tocava para saudar o orixá de sua agremiação. A relação das escolas de samba, nos desfiles, musicalmente e na dança, com fundamentos das religiões de matriz africana, era muito nítida nos primeiros desfiles. Os componentes seguiam um cortejo a caminho da Praça Onze e reverenciavam mães de santo, como Tia Ciata e Tia Fé, com as baterias. Então, o batuque das baterias, as ondas sonoras, conduzem o "axé", a energia, a força e o poder da natureza, invocando os orixás a participarem do cortejo, mantendo viva ancestralidade do povo negro. 

Autor: Osmar Filho.

Também é imprescindível falar dos cantores e cantoras que marcaram com suas vozes negras a história da musicalidade preta quilombola das escolas de samba. O que dizer dos poucos reconhecidos tenores e barítonos do samba, com vozes que na vertente popular e solta do samba pouco têm a dever a cantores consagrados pela cultura não negra dentro e fora do Brasil. Jamelão, por exemplo, do alto de sua realeza canora, nunca tendo aceitado a alcunha de “puxador” de samba, sempre advogou o próprio valor como intérprete, e por isso eternizou suas interpretações nos desfiles da Estação Primeira de Mangueira. Certamente sua tessitura vocal deve estar como as vozes de Ney Vianna, os David do Pandeiro e Correia, vibrando por aí, fazendo o universo sambar. 

Toda essa trama sonora não pode ser completa sem a presença da imaginação poética dos compositores, que nos bridam com as palavras cantadas, aquelas que carregam o “ofó”, o sopro que dá a vida aos versos que todo brasileiro conhece: de vocalizes desinteressados em simples laia laias às sentenças que expõem rincões de nossa cultura, como em “Vejam essa maravilha de cenário”, do Amazonas ao Rio dos cantos e batucadas. 

A musicalidade das escolas de samba, herança africana, portanto, é mais que uma celebração, um festejo ou um ritmo. O batucar dos tambores, as vozes que ecoam os versos de um samba, os corpos que dançam; tudo isso é som, propagado em ondas que fazem tudo tremer. É a energia em movimento, que sai dos batuques dos tambores, das cordas vocais e da ginga do corpo, e enche o espaço, ganhando o universo e nos reconectando com a nossa ancestralidade.



Para saber mais sobre as batidas de cada bateria acompanhe a nossa Série Batuques nas quarta-feiras de agosto. Já sobre a relação de devoção entre as agremiações e seus protetores a pedida é a Série Padroeiros

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