#SérieMulheres: Rainhas do canto e da dança: a atuação das mulheres no universo musical das escolas de samba

by - agosto 17, 2020

Todas as segunda-feiras do mês de agosto, nossos leitores acompanham no Carnavalize a Série Mulheres, na qual contamos histórias, lembramos figuras históricas e enaltecemos mulheres que fizeram e fazem história no Carnaval e no mundo do samba. 



Texto: Juliana Yamamoto
Revisão: Luise Campos

O protagonismo das mulheres no Carnaval está crescendo constantemente. A ocupação de cargos importantes vem se tornando cada vez mais comum e adquirindo notoriedade. Em alguns âmbitos da folia momesca, ainda há redutos majoritariamente formado por homens, mas, aos poucos, as damas vêm se firmando em funções que até então eram apenas exercidas por representantes do gênero masculino, diminuindo o “estereótipo” e machismo intrínseco. No âmbito musical, com o passar das décadas, muitas mulheres vêm surgindo e tentando marcar seu espaço num segmento em que ainda possuem pouco destaque.


Sim, voz feminina combina com samba-enredo


Há registros de que já na década de 1940, os puxadores (como eram comumente chamados os intérpretes de samba-enredo na época) eram acompanhados em seu canto pelas famosas pastoras, coro formado por mulheres que cantavam em um tom mais alto, lembrando o canto bonito das lavadeiras. Essa tradição jamais se perdeu e deu origem a um grupo que muito contribuiu para o destaque das mulheres num time de canto nos desfiles.  “As gatas”, conjunto de vozes formado por quatro cantoras - Dinorah, Nara, Zélia e Zenilda - que, desde 1968, foram também responsáveis pelos corais nas faixas dos sambas-enredos nas gravações dos discos. Elas também costumavam ser apoio dos intérpretes oficiais, estreando na função em 1977 pela Beija-Flor. 

Mas a primeira cantora mulher a defender um samba num desfile foi Carmen Silvana, em 1964, emprestando a voz que lhe rendeu a alcunha de “rouxinol do Império Serrano” o lendário desfile Aquarela Brasileira da escola de Madureira. A agremiação voltaria, na década seguinte, protagonizar outro grande momento ao apostar em outra mulher para integrar o seu time de canto. Em 1972, a verde e branca contratou uma das famosas cantoras do rádio, a estrela Marlene, para conduzir o samba-enredo “Alô, alô, taí Carmen Miranda”. A rainha do rádio, que já em 1968 havia participado do show “Carnavália, uma antologia do Carnaval”, foi a voz feminina que deu o tom a um desfile que levou a escola ao campeonato. Com o sucesso de sua apresentação, Marlene permaneceu mais um ano na Serrinha, defendendo dessa vez o samba “Viagem fantástica de Pindorama adentro”, em 1973. Mas, voltando aos anos 1960, outro nome chama a atenção por se tratar de uma das personalidades mais conhecidas até os dias de hoje no mundo do samba: Tia Surica, baluarte da Portela, em 1966, foi uma das intérpretes de “Memórias de um Sargento de Milícias”, ao lado de Maninho e Catoni.

Elza Soares no desfile oficial da Mocidade Independente em 1976. Foto: Acervo O Globo.

Elza Soares também foi muito importante na defesa de sambas e uma das pioneiras em sua trajetória. A cantora, que já era consagrada no país, recebeu o convite para conduzir em 1969 o samba-enredo do Salgueiro “Bahia de todos os deuses”, que deu à agremiação seu quarto título. Após uma louvada apresentação, a artista mudou de escola e começou a trilhar seus caminhos na Mocidade Independente de Padre Miguel, onde dividiu o posto oficial como intérprete ao lado de Ney Vianna por 3 anos, nos carnavais de 1974 (Festa do Divino), 1975 (O mundo fantástico do Uirapuru) e 1976 (Mãe Menininha do Gantois). Após uma breve pausa nos desfiles, Elza retornou ao microfone de uma escola de samba em 1979, ano em que defendeu mais um samba-enredo, mas pelo Carnaval de Niterói, no Acadêmicos do Cubango. 

Depois de 20 anos, a cantora retornou à verde e branco, em sua estreia num carro de som na Sapucaí. Se Elza não foi a primeira, certamente foi uma das presenças femininas mais marcantes no canto das escolas de samba. Quando aceitou o convite de conduzir o samba do Salgueiro, a artista tornou-se um espelho para novas vozes femininas surgirem no segmento nos anos seguintes e, sem dúvida, por sua carreira tão notável, até os dias de hoje.

Por falar em ícone da música popular brasileira, há alguns nomes que não podem ser esquecidos nessa compilação. Um deles é o de Beth Carvalho, figurinha carimbada quando o assunto são as mulheres na condução de um samba-enredo. A eterna madrinha, que sempre frequentava rodas de samba e fez sua carreira gravando obras que se tornaram clássicos do gênero, em 1974, deu voz a “Mangueira, em tempo de folclore”, já que Jamelão estava, na ocasião, impossibilitado de gravar por questões contratuais. Beth também esteve presente em algumas oportunidades no time de canto da Estação Primeira, ajudando a conduzir as obras na Avenida. 

Clara Nunes desfilando pela Portela em 1982. Foto: Acervo O Globo.

E não para por aí. Muitos não sabem, mas Clara Nunes foi uma das grandes precursoras nesse âmbito carnavalesco. No ano de 1971, ela gravou dois sambas-enredo, um para o Império da Tijuca (“Misticismo da África no Brasil”) e outro para o Salgueiro (“Festa para um rei negro), que acabou sendo o estopim para a seu sucesso no samba, já que antes percorreu outros gêneros musicais. Em 1975, esteve no carro de som da Portela, ao lado do intérprete oficial Silvinho do Pandeiro, defendendo o samba-enredo “Macunaíma”. Clara também contribuiu para que muitas canções que remetiam universo do Carnaval fizessem sucesso, como “Portela na avenida” e o “Canto das três raças”. Seu pioneirismo feminino foi homenageado, mais tarde, por outro nome feminino marcante do mundo da música. Alcione foi convidada, por ter sido amiga próxima de Clara, a gravar a reedição de “Contos de Areia”, pelo GRES Tradição, no ano de 2004. 

No entanto, antes disso, na década de 1980, o número de mulheres no carro de som diminuiu consideravelmente. Apenas em 1989 as vozes femininas começaram a surgir nos times de canto novamente. A cantora Simone dividiu o posto de intérprete oficial ao lado de Candanda pela Tradição, juntos defendendo o samba-enredo “Rio, samba, amor e tradição”. Entretanto, a artista recebeu muitas críticas pela sua apresentação. Outros nomes também vieram surgindo, como da conhecida Leci Brandão, que começou como cantora e compositora na década de 1960. A artista participou de vários festivais de samba e MPB e, em seus álbuns, costumava regravar sambas clássicos. Em 1995, recebeu o convite do Acadêmicos do Santa Cruz para defender o samba-enredo “Deuses e costumes na terra da Santa Cruz”, pelo Grupo de Acesso.

Eliana de Lima fez história no carnaval de São Paulo. Foto: Pérola News.

Vale também destacar que não foi apenas em terras cariocas que as mulheres lutaram por um espaço no segmento musical. Em São Paulo, algumas artistas marcaram seu nome na história e tornaram-se referência para muitos que surgiram posteriormente - Eliana de Lima é uma delas. A cantora é uma das mais consagradas vozes do samba do país e iniciou sua trajetória no Carnaval paulistano, no ano de 1979, quando começou a frequentar a quadra da escola Cabeções de Vila Prudente. Apesar do seu inegável talento para a música, Eliana sofreu resistência e muito preconceito para ser reconhecida e ter seu devido espaço. A carreira como intérprete começou em 1980, defendendo o samba-enredo da escola Príncipe Negro. Eliana passou por várias agremiações, mas seus principais destaques foram pela Unidos do Peruche e Leandro de Itaquera. Grandes clássicos paulistanos foram gravados na voz da artista, como “Os sambas filhos da mãe preta”, de 1988, da Peruche, oportunidade em que dividiu o posto oficial de intérprete com o grande Jamelão e “Babalotim - A história dos afoxés”, de 1989, da Leandro. 

Conhecida como a “tulipa negra do samba”, Bernadete foi outro nome muito importante para a folia paulistana. A intérprete protagonizou um dos momentos mais marcantes do Carnaval de São Paulo, quando foi chamada às pressas pela Unidos do Peruche para substituir Eliana de Lima no dia do desfile oficial, já que a cantora havia dado à luz. Com isso, Bernadete foi a primeira intérprete mulher a defender um samba-enredo no recém-inaugurado Sambódromo do Anhembi, em 1991. Além de sua passagem pela Filial do Samba, ela também esteve presente em outras agremiações como Barroca Zona Sul, Império de Casa Verde, Dom Bosco, Acadêmicos do São Jorge, sempre integrando o time de canto. 

A artista precisou lidar com o machismo para conseguir ganhar o seu espaço e se firmar no segmento. Em entrevista concedida ao portal Catraca Livre, em 2017, ela afirmou: “Absolutamente nada mudou. Eu estou no palco, estou no carro de som, mas ninguém pensa em dar o microfone principal para mim – nem para nenhuma outra. É necessário fazer com que as mulheres sejam respeitadas e reconhecidas por todo esse trabalho que vem empreendendo.” Por ser uma figura simbólica da Unidos do Peruche, a artista retornou à agremiação em 2005 e, em 2008, tornou-se a primeira mulher a possuir o cargo de diretora da ala de compositores da escola, permanecendo até hoje.

Grazzi Brasil em desfile oficial do Paraíso do Tuiuti em 2019. Foto: Site Carnavalesco.

Todas as mulheres citadas foram muito importantes para que pudessemos ver mais vozes femininas nos times de canto hoje em dia, ainda que em número pequeno. Desta forma, não podemos esquecer de mencionar Grazzi Brasil, uma das vozes femininas mais fortes dos últimos anos. A cantora iniciou a sua trajetória no Vai-Vai, onde integrava o time de canto dos sambas-enredos concorrentes campeões de 2015 e 2016. Mas foi em 2017, quando defendeu a obra “Mãe Menininha do Gantois”, que alcançou a sua consagração e notoriedade. Recebeu o convite para integrar o carro de som da Saracura no mesmo ano e dividiu a faixa do CD ao lado do intérprete Wander Pires. Em 2018, tornou-se a primeira intérprete feminina da história da escola do povo, onde permaneceu até o Carnaval 2019. O grande talento da cantora fez com que ela ganhasse uma oportunidade no Rio de Janeiro, onde foi intérprete do Paraíso do Tuiuti e da São Clemente.  


O dom de compor é coisa de mulher


Permanecendo no âmbito musical, é preciso reconhecer que ainda há poucas mulheres figurando nas alas de compositores de uma escola de samba. Este é outro segmento formado na sua maioria por homens e em que ainda há forte resistência à presença feminina. Mesmo com essas questões, tivemos mulheres que conseguiram fazer história e marcar o Carnaval com suas composições. Tudo indica que a primeira compositora e uma das pioneiras foi Carmelita Brasil, da Unidos da Ponte. De 1959 a 1964, Carmelita foi responsável pelos enredos e também pela composição dos sambas da agremiação. Não bastasse isso, Carmelita também foi presidente da escola da Baixada Fluminense do Rio de Janeiro. 


Dona Ivone Lara desfilando pelo seu Império Serrano em 1985. Foto: Acervo O Globo

Um dos nomes mais marcantes e importantes no mundo do samba é o da famosa e consagrada Dona Ivone Lara. A cantora perdeu seus pais quando era criança e foi criada pelos seu tio, que era músico e lhe ensinou tocar cavaquinho. Tendo recebido educação musical formal no colégio que frequentava, desde os 12 anos já escrevia várias canções. Foi nessa idade que compôs “Tiê”, um dos grandes sucessos de sua carreira.. Ao se casar com o filho do fundador da escola de samba Prazer da Serrinha, Oscar, sua vida ficou ainda mais atrelada ao samba. Seu primo, mestre Fuleiro, foi um dos fundadores do Império Serrano e, com isso, Ivone Lara começou a frequentar a nova agremiação. 

No fim da década de 1940, os sambas que a artista havia composto eram apresentados como se fossem do seu primo, pois naquela época o preconceito ainda era grande e não havia espaço para mulheres compositoras. As coisas começaram a mudar em 1965, um ano inesquecível e muito importante para a artista. O samba-enredo “Cinco Bailes da História do Rio”, composto para o desfile da verde e branca de Madureira, de autoria de Ivone junto ao mestre Silas de Oliveira e Bacalhau, tornou-se um clássico, deixando como marca seu nome como a primeira compositora mulher a assinar um samba-enredo numa grande escola do Rio de Janeiro. Além disso, a artista quebrou outro tabu, quando tornou-se a primeira mulher a integrar a ala de compositores de uma agremiação. Em 1961, Ivone já havia desfilado como componente da ala, mas apenas quatro anos depois passou a fazer parte dela oficialmente. 

Personagem já citada neste texto, Leci Brandão, além de ter sido intérprete, também foi compositora. No ano de 1972, entrou para a ala dos compositores da Estação Primeira de Mangueira, sendo a primeira mulher a conseguir tal feito na verde e rosa. Participou de várias disputas de sambas-enredos, porém, nunca foi campeã, conquistando o segundo lugar em duas oportunidades, sendo a última no Carnaval de 1998.

Outra compositora muito experiente é Dona Zezé, que faz parte da ala dos compositores do Paraíso do Tuiuti e tem quatro sambas assinados na escola: 2004, 2011, 2018 e 2019. A artista já comentou que não enfrentou muitas complicações para participar de parcerias e assinar obras na escola, diferente de muitas outras compositoras. Dona Zezé, que tem 74 anos, começou na escola de São Cristóvão como presidente de ala, ajudou na confecção de fantasias e começou a compor sambas por curiosidade, junto com seu filho Eric. 


Manu da Cuíca é autora do samba-enredo campeão de 2020 da Estação Primeira. Foto: Site Carnavalesco.

No Carnaval de 2020, tivemos duas compositoras mulheres vencedoras de concursos de sambas-enredo no Grupo Especial do Carnaval do Rio de Janeiro: Manu da Cuíca conseguiu emplacar seu samba na Mangueira, assim como Sandra de Sá o fez na Mocidade Independente de Padre Miguel. Manu, que em 2019 também foi uma das autoras da obra campeã da Mangueira, ainda que não tenha assinado oficialmente a obra num primeiro momento, é uma das artistas que está em ascensão na folia carioca, graças ao seu inegável talento. Em entrevista realizada para O Globo em 2019, ela enfatizou:

“É um ambiente marcadamente masculino. As mulheres nas escolas de samba participam, historicamente, de outros segmentos. E não é que não queiram, mas porque há predomínio masculino mesmo. Não faltam, por exemplo, sambas que exaltam belezas femininas com algumas demarcações de inferioridade que chegam a ser ridículas. Eu jamais faria um samba assim. É sempre desconfortável. Não faltam mulheres para compor, mas a gente tem que mostrar o tempo inteiro que está fazendo samba.”

Como se pode notar, o preconceito que Dona Ivone Lara sentiu na década de 1940, infelizmente, ainda está presente na atualidade. 


Vêm chegando as batuqueiras


Outro universo que também, por muitos anos, era predomínio dos homens é o da bateria das escolas de samba. Consideradas o “coração” de uma agremiação e que, junto ao samba-enredo, formam a trilha sonora de um desfile, por muitos anos, as orquestras percussivas tinham como ritmistas e diretores apenas representantes do gênero masculino, o que vem mudando gradativamente. Essa restrição se dava por motivos religiosos: num paralelo com o universo das religiões afro-brasileiras, como a umbanda e o candomblé, em que uma mulher não pode ocupar o cargo de ogã - o responsável por tocar o tambor nas cerimônia -, essa proibição se estendeu aos cortejos carnavalescos. No entanto, atualmente, essa tradição não é mais seguida e se pode ver, em média, 30% de mulheres numa bateria, sendo que, em algumas agremiações, há um número ainda maior. Apesar da figura feminina ser mais presente apenas recentemente, a primeira mulher a desfilar em uma bateria de escola de samba foi Dagmar, em 1938, pela Portela, onde tocava surdo. 

Dagmar, a primeira mulher a desfilar numa bateria em 1938 pela Portela. Foto: Portela - Facebook

Ainda é raro encontrar mulheres comandando baterias, mas a presença de ritmistas e diretoras de bateria está se tornando mais frequente. Uma das ritmistas mais antigas do Carnaval carioca é Neide Tamborim, que desde a década de 1970 toca o instrumento na Beija-Flor. Naquela época, Neide sofreu muita resistência por parte dos homens. A tradicional Mangueira por exemplo, começou a aceitar mulheres na sua bateria apenas a partir do carnaval de 2007, quando somente 11 delas foram selecionadas. E, mesmo sendo ainda incomum, tivemos algumas mulheres como mestres de bateria. A primeira foi Helen Maria Silva Simão, de 2009 a 2011, quando foi mestre da extinta Unidos do Uraiti, do Grupo E do Rio de Janeiro. Oito anos depois, mais uma ganhou a oportunidade de realizar a função. Em 2019, Thais Rodrigues tornou-se mestre de bateria da escola Feitiço do Rio, que disputa a Série E, o Grupo de Avaliação do Carnaval carioca. Além disso, ela também é diretora de surdo na bateria do Acadêmicos da Rocinha.

Em São Paulo, as baterias contam com muitas mulheres como ritmistas. Em consequência disso, algumas também estão ocupando a função de diretoras. Talita Badia é a atual diretora de chocalho da Cadência da Vila, da Unidos de Vila Maria, cargo que ocupa desde 2015. Sua história no Carnaval iniciou em 2006, quando começou a tocar chocalho na bateria da Mancha Verde. No ano seguinte, assumiu o naipe de chocalhos da verde e branco, até ir para a agremiação do Jardim Japão. Além dela, temos outros exemplos: Gabriela Barranqueiro é diretora de agogô da X9 Paulistana desde 2017, com passagens anteriores por Águia de Ouro, Dragões da Real e Rosas de Ouro e Tamara Santana foi diretora de bateria da Puro Balanço da Mancha Verde de 2015 a 2019, tendo começado a batucar muito pequena, aos 5 anos, tocando tamborim.

Talita Badia em ensaio técnico para o carnaval de 2018 pela Vila Maria. Foto: Igor Catanhende

Em 2020, tivemos uma mulher comandando uma bateria no Grupo de Acesso 1 de Bairros da UESP. Rafaella Rocha Azevedo, a Rafa, é mestre de bateria da Imperatriz de Pauliceia. Ela, que já havia liderado os ritmistas da “Swing da Paulicéia” em 2015, retornou no último Carnaval. O início de sua carreira foi na X9 Paulistana, em 2007 como ritmista, onde, através de sua disciplina e talento, se destacou e começou a cavar ainda mais seu espaço. 


A diversidade de bailados


Para além das vanguardistas, há segmentos no Carnaval que, desde muito cedo, foram ocupados pelas mulheres, como é o caso das passistas. No entanto, é importante salientar que o papel delas numa escola de samba está além de se restringir aos seus corpos seminus e esbeltos. Por anos, as donas do samba no pé sofreram com a objetificação de suas imagens, resultado do olhar daqueles que consomem o Carnaval apenas como produto, sem levar em conta seus códigos culturais. Através de uma luta de conscientização que iniciou há décadas, as mulheres tentam mostrar por meio de sua dança o quanto são fortes, independentes e donas de seus corpos, dos mais variados tipos, empoderando umas às outras.

Uma das primeiras passistas a fazer sucesso nacionalmente foi Maria Mercedes, mais conhecida como Maria Lata D'Água, por sambar e dançar equilibrando, como diz sua alcunha, uma lata d’água na cabeça. Iniciou sua trajetória no Salgueiro, porém, quando frequentou a agremiação, não podia usar o símbolo que a tornou conhecida. Foi apenas na Portela que voltou a usar a sua famosa lata. Teve passagens por outras agremiações, como Beija-Flor, Mocidade Independente de Padre Miguel e Estácio de Sá. Foram 45 anos dedicados ao Carnaval, presenteando os foliões com seu carisma característico e samba no pé.


Paula do Salgueiro foi a responsável pelo surgimento do termo passista. Foto: Revista Manchete.

O termo “passista” surgiu graças a Paula da Silva Campos, uma salgueirense que encantou a todos com seu gingado. Paula tinha uma forma de dançar única e diferente de outras mulheres, por isso, os jornalistas na época, acharam necessário a criação de um nome para batizar a sua dança. Antes da definição do termo, era comum chamarem-na de malabarista. A artista iniciou sua trajetória na década de 1940, em Niterói, na escola “Combinado do Amor”. Seu grande sucesso foi pelo Acadêmicos do Salgueiro, escola em que chegou em 1954 e permaneceu desfilando até a década de 1980. Ela foi destaque não só da vermelho e branco, mas do Carnaval carioca, com sua alegria, roupas características e por ter simbolizado o espírito do povo carioca. 

Por sua vez, Pinah não é considerada uma passista, mas uma destaque de chão, porém, ela marcou seu nome no Carnaval pelo seu característico samba no pé. Sua grande explosão no Carnaval foi quando aceitou o convite do seu amigo carnavalesco Joãosinho Trinta para ir a Beija-Flor de Nilópolis. A artista o conheceu no Salgueiro, na década de 1970, e esteve presente nos títulos de 1974 e 1975. Pinah ficou mundialmente conhecida em 1978 quando dançou com o príncipe Charles, que estava visitando a cidade maravilhosa e participando de uma festa com a presença da azul e branco de Nilópolis para mais de 400 convidados. Em 1983, a Cinderela Negra foi homenageada ao lado de outros artistas pela deusa da passarela, ganhando alguns versos no samba-enredo: “Pinah êêê Pinah, a Cinderela negra que ao príncipe encantou, no Carnaval com o seu esplendor”. Seu último ano desfilando pela Beija-Flor como destaque foi em 1989, no inesquecível “Ratos e Urubus: larguem minha fantasia”. 

Pinah ao lado do príncipe Charles. A cena ganhou os holofotes internacionais.


Outro nome marcante da Beija-Flor foi Sônia Maria Regina, mais conhecida como Soninha Capeta. A artista ganhou esse nome pela forma acelerada como sambava, mexendo os quadris muito rapidamente. Soninha possui uma forte história de superação: ela perdeu seu filho quando tinha 21 anos e chegou até morar na rua por alguns anos. Foi rainha de bateria da escola da Baixada Fluminense por quase duas décadas e seu último desfile no posto foi em 2003, quando deu lugar à Raíssa. Soninha e tantas outras, como Narcisa do Salgueiro, Gigi da Mangueira, Adele Fátima e Nega Pelé escreveram seu nome na história do Carnaval e encantaram com seu gingado e samba. Muitas vezes tratadas como meros símbolos sexuais, essas mulheres merecem ser valorizadas e reconhecidas na história do Carnaval.

Assim como as passistas, as porta-bandeiras têm uma função muito importante dentro de uma escola de samba, ao lado do mestre-sala. A dama tem a função de ostentar o símbolo maior de uma agremiação, além de apresentá-lo junto ao seu parceiro com muita elegância e leveza. O casal está extremamente ligado à figura da porta-estandarte e do baliza nos antigos carnavais. O baliza, à época, tinha como principal função proteger a porta-estandarte para que ninguém pegasse a sua bandeira. Roubar o pavilhão do outro grupo era como uma forma de troféu, por isso, sua proteção, inclusive do ponto de vista da força física, era necessária. Muito por conta disso, os primeiros porta-estandartes eram homens, posição essa que foi incorporada nas escolas de samba. Um dos primeiros porta-bandeiras foi Ubaldo, da Portela. Já Maria Adamastor foi uma das primeiras mestre-salas que fez história no posto. Ao longo dos anos, essa ordem foi invertida e o que temos até os dias de hoje é a figura do mestre-sala ligado ao homem e a figura da porta-bandeira ligada à mulher. 

Nos últimos meses, não sem certa polêmica, vimos o surgimento de Anderson Morango, segundo porta-bandeira no Acadêmicos do Sossego. Como já citado, historicamente as primeiras pessoas porta-bandeiras eram homens, antes dos papéis de acompanhantes do pavilhão cruzarem as identificações de gênero. Rupturas com os padrões de normatividade e os papéis dos gêneros construídos socialmente geram desconforto naqueles que pregam por um conservadorismo enfadonho. Independentemente de sua identificação, que deve ser respeitada e defendida, Anderson está ciente da sua figura e da responsabilidade que possui dentro de uma agremiação. E é isso o que mais importa para uma pessoa exercer o carregar da bandeira.

Maria Helena uma das maiores porta-bandeiras do carnaval carioca. Foto: Leandro Milton - SRZD

A porta-bandeira, figura que possui o status de “rainha”, tem um bailado elegante, sempre com um sorriso no rosto e mantendo o seu pavilhão desfraldado. Muitas porta-bandeiras marcaram seu nome no Carnaval, como Neide, Maria Helena, Vilma Nascimento, Eneidir Gomes e Maria Gilsa. Elas e tantas outras foram detentoras de grande responsabilidade em seus desfiles, pois, junto ao mestre-sala, representam um único quesito. Em suas mãos, o maior símbolo de uma agremiação tem seu destaque e sua devida valorização. Além de uma linda dança, precisam carregar uma fantasia muito pesada - podendo chegar até 40kg - e manter uma evolução constante por toda a Avenida. 

Confira os demais textos da Série Mulheres, que investigam a história das escolas de brasileira pela ótica feminina. O passeio começa pelo seio feminino das ancestrais do samba, segue pelas líderes e fundadoras que fizeram história.  O terceiro capítulo passa pelas Rainhas do canto e da dança: a atuação das mulheres no universo musical, até chegar na Heroínas do barracão: a atuação feminina na construção artística do carnaval

Confira ainda a #SérieBatuques sobre a batida de grandes baterias brasileiras. Imperdível! 



Referências Bibliográficas:

https://catracalivre.com.br/samba-em-rede/bernadete-primeira-mulher-puxar-um-samba-enredo-no-anhembi/

http://soulart.org/artes/bernadete-lanca-minibiografia-literaria

https://www.fatopaulista.com.br/index.php/cotidiano/item/2953-bernadete-a-tulipa-negra-do-samba

http://www.sambariocarnaval.com/index.php?sambando=mulheres

https://www.geledes.org.br/mulheres-vencem-machismo-em-disputa-de-samba-enredo-das-escolas-do-grupo-especial/

https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/diversao-e-arte/2016/05/03/interna_diversao_arte,530121/sambas-que-retratam-mulheres-marcam-nova-fase-menos-preconceituosa.shtml

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