#Colablize: Dona LigaSP, por favor não leve a mal, chegou a hora de rasgar o manual
por Artur Paschoa
Mais uma vez, o resultado final da apuração das notas dos desfiles das escolas de samba de São Paulo deixou aqueles que acompanhamos o carnaval paulistano com um gosto amargo na boca. Pela segunda vez em quatro carnavais, quatro escolas empataram no topo da tabela do Grupo Especial, definindo-se o título através de notas em teoria descartadas. Essa situação não é mero acaso, mas fruto de um modelo de julgamento implementado e reforçado pela Liga Independente das Escolas de Samba de São Paulo (LigaSP) nos últimos anos.
Fundamentalmente, o modelo adotado pela LigaSP estabelece grandes restrições à possibilidade dos jurados de penalizarem as escolas, diminuindo o número de pontos retirados das agremiações e produzindo dois fenômenos simultâneos: apurações cada ano mais acirradas, como evidenciado pela ocorrência dos dois empates quádruplos, e a chamada “chuva de 10”, já característica das apurações paulistanas. Não se trata de simples impressão; neste ano, das 504 notas atribuídas pelos jurados às 14 escolas do grupo especial, apenas 120, ou 23,8%, não foram a nota máxima. A título de comparação, no carnaval carioca, 46,9% das notas atribuídas tiveram desconto.
Ainda mais grave que a banalização da nota 10 — que ironicamente o manual do julgador da própria LigaSP alerta como prejudicial ao espetáculo — é o desequilíbrio gerado entre os próprios quesitos em julgamento. Neste ano, pela terceira vez consecutiva, nenhuma escola do grupo especial foi penalizada no quesito Samba-enredo, desconsiderando os descartes. Ora, qual o sentido de um quesito que não é capaz de diferenciar a apresentação das escolas? É justo dizer que não houve qualquer diferença qualitativa em letra e melodia entre os 42 sambas do grupo especial que passaram pelo sambódromo do Anhembi nos últimos três carnavais?
Infelizmente, o problema tampouco restringe-se ao quesito Samba-enredo: Harmonia, que neste ano não penalizou nenhuma agremiação, retirou apenas um décimo em 2020 e dois décimos em 2019; Bateria, um décimo neste ano, dois décimos em 2020 e nada em 2019; Enredo, dois décimos neste ano, quatro em 2020 e três em 2019.
Mais do que a simples constatação de que quatro dos nove quesitos em julgamento foram virtualmente inúteis nos últimos carnavais, fica evidente a desvalorização dos quesitos musicais e de chão, em favor dos quesitos visuais e coreográficos. Neste ano os quesitos que mais despontuaram as escolas foram Evolução (1,3 ponto) e Mestre-sala e Porta-bandeira (1,2 ponto); em 2020, Alegoria (4,1 pontos) e Fantasias (2,6 pontos), que juntos foram responsáveis por mais da metade do total de deduções; e em 2019 Alegoria (2,4 pontos) e Comissão de Frente (2,3 pontos) — naquele ano, todos os demais quesitos somados foram responsáveis pela subtração de apenas mais 2 pontos.
A Águia de Ouro conquistou seu primeiro título na folia em 2020. (Foto: R7) |
Esse modelo produz graves distorções sobre o que entendemos como a manifestação cultural e artística das escolas de samba. Hoje, uma agremiação paulistana que não possua a mesma estrutura de barracão ou patamar financeiro, com alegorias e fantasias que não atinjam o mesmo nível de acabamento que de suas coirmãs, por exemplo, não consegue mais encontrar na força de um enredo poderoso ou de um grande samba a possibilidade de se colocar em pé de igualdade.
Evidentemente que a trajetória recente das agremiações reconhecidas como mais tradicionais da folia paulistana é bastante complexa, mas não é difícil ver o impacto desse modelo de julgamento sobre escolas que sempre tiveram no samba e no chão seus principais trunfos. Não custa lembrar que neste ano, o Vai-Vai foi novamente rebaixado ao Grupo de Acesso I, onde se juntará à Nenê de Vila Matilde e ao Camisa Verde e Branco; Leandro de Itaquera e Unidos do Peruche disputarão ano que vem a terceira divisão do carnaval paulistano. Não se trata de achar que essas escolas merecem tratamento especial, mas de entender que o modelo de julgamento da LigaSP prioriza aspectos de um desfile diferente daqueles em que essas agremiações costumam se destacar, deixados de lado na avaliação oficial.
Ao ultrapassarmos a camada meramente quantitativa das deduções em cada quesito e nos debruçarmos sobre o que efetivamente vem sendo penalizado, encontramos um problema ainda mais grave. O manual do julgador da LigaSP torna explícita sua busca por um julgamento estritamente “objetivo”: “O julgamento é a tentativa de dar consistência técnica a um desfile de escola de samba, fazendo com que os julgadores se tornem a média matemática do espetáculo, levando em consideração menos sua subjetividade e mais critérios técnicos previamente definidos que ‘medem’ o equilíbrio de cada escola. (...) Lembramos que não é função do julgador gostar ou não da exibição de um quesito, mas sim analisar o desempenho técnico do mesmo”.
O manual ainda define com grande detalhamento o que deve ou não ser punido em cada um dos quesitos, e em que medida, apresentando inclusive uma lista de “termos subjetivos” interditados de serem utilizados nas justificativas das notas. A consequência dessa metodologia que busca a objetividade absoluta é um julgamento mais semelhante a uma conferência de critérios que devem ser cumpridos do que à avaliação de uma expressão artística e, portanto, inerentemente subjetiva. Ironicamente, o manual da LigaSP estampa logo na terceira página uma frase do pesquisador Hiram Araújo: “Se o ato de julgar fosse simplesmente uma conferência de requisitos básicos, não haveria a necessidade de jurados e sim uma comissão fiscalizadora realizaria o trabalho”.
Para não ter dúvidas de que o corpo de jurados da LigaSP tem atuado mais como comissão fiscalizadora do que como órgão capaz de efetivamente produzir um julgamento sobre o que é apresentado por cada escola, basta olhar com mais atenção para a maneira como a entidade instrui os jurados a realizarem seu trabalho. Primeiramente, a tarefa de “ponderar e analisar até que grau a agremiação cumpriu a totalidade dos requisitos”, nas palavras de Araújo, é tomada pela própria entidade, que apresenta para cada quesito uma tabela que indica qual deve ser o desconto aplicado à nota para a quantidade de “ocorrências” de cada agremiação. Além disso, a tabela ainda indica e exemplifica quais são essas ocorrências passíveis de punição, por vezes dividindo em subquesitos.
O quesito Alegoria, por exemplo, um dos principais responsáveis pelas deduções dos últimos anos (0,8 ponto neste ano, 4,1 em 2020 e 2,4 em 2019) é subdividido pela LigaSP em Execução — se as alegorias apresentadas estão de acordo com o descrito pela escola na pasta entregue aos jurados —, Realização — variação de cores e formas, proporção das esculturas e volumetria da alegoria — e Acabamento. Fica claro que há pouco ou nenhum espaço para avaliação da concepção das alegorias, ou seja, se transmitem a mensagem proposta pela escola para aquele momento do desfile e se o fazem de maneira plasticamente adequada.
É vedada ao jurado a possibilidade de avaliar se a produção artística da escola é interessante, se engaja e atrai visualmente, ou se oferece uma plástica simplória e monótona. Seu trabalho se limita, portanto, a uma simples conferência. Os elementos estão de acordo com o descrito na pasta? Não há rasgos ou amassados? As esculturas estão na proporção “correta”? Se o conjunto de alegorias preencher todos os requisitos, o jurado é forçado pelo manual a conceder a nota máxima, ainda que possa ter uma opinião diferente sobre a plástica apresentada.
Observando as justificativas dos jurados de Alegoria no carnaval deste ano, das 20 notas inferiores à máxima, 13 se tratava apenas de problemas de acabamento nas alegorias, quatro apontavam também problemas de proporção nas esculturas, três a presença de elementos alheios à alegoria e uma a divergência com o apresentado na pasta. O mesmo se repete nas justificativas apresentadas para o carnaval de 2020, em que as falhas de acabamento são responsáveis pela grande maioria dos pontos deduzidos.
A Tucuruvi criticou os rumos da folia paulistana em seu desfile em 2022. (Foto: Metrópoles) |
Tal filosofia de julgamento, baseada na tentativa invariavelmente frustrada de enquadrar em critérios absolutamente objetivos uma manifestação de natureza artística, incentiva as escolas não a uma produção cultural complexa, ousada ou impactante, mas à reprodução de modelos simplistas, de fácil produção e acabamento, seja em alegorias, aqui tomadas como exemplo, ou em qualquer dos demais quesitos. Alguma escola paulistana ousaria a criação de uma alegoria produzida inteiramente de lixo do carnaval, que dificilmente pode ser descrita com exatidão numa pasta, como a apresentada pela Grande Rio no encerramento de seu carnaval campeão deste ano? Não porque falte criatividade ou competência aos artistas e trabalhadores engajados na produção do carnaval paulistano — mas as escolas topariam o risco de sofrerem sanções de “acabamento”, “proporção” ou “fidelidade à pasta”?
Na prática, esse modelo de julgamento tende a um acomodamento completo das escolas, a esta altura já acostumadas à produção de desfiles protocolares, muito mais propícios a produzirem bons resultados na apuração. Na busca por um carnaval livre de “subjetividades”, a LigaSP se livrou também da criatividade, da ousadia e da inovação em todas as diversas facetas de uma manifestação cultural tão complexa quanto as escolas de samba. Ao invés de rumar “ao maior carnaval do Brasil”, os desfiles das escolas de samba paulistanas rumam a passos largos à monotonia e ao esquecimento.
Corrigir o rumo ainda é possível, mas as mudanças precisam ser drásticas e imediatas. É preciso olhar para as raízes do carnaval de São Paulo, como nos mostrou este ano a Acadêmicos do Tucuruvi em seu desfile-protesto, cuja colocação quase no fim da tabela é a prova viva daquilo que critica:
"E hoje a alma do sambista
Engessada nessa pista
Onde quem tem muito pode mais
Um show que só impera a vaidade
E o samba de verdade vai ficando para trás
Os baluartes que fizeram nossa história
Esquecidos na memória
Implorando o seu valor
No choro da velha baiana, há esperança no olhar
E a força da nossa raiz ninguém pode calar"
Arquiteto e urbanista pela USP e graduando em Cenografia pela UFRJ, Artur Paschoa integra a equipe do carnavalesco Edson Pereira, atualmente no Acadêmicos do Salgueiro. Participa também do Observatório de Carnaval (OBCAR - LABEDIS/MN/UFRJ), onde desenvolveu pesquisa acerca do imaginário das favelas nos desfiles das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, e é carnavalesco no Carnaval Virtual.
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