#Padroeiros: quem não deve não teme: o Oió tijucano

by - julho 29, 2020


Depois de passear pelos carnavais da última década e também pelos baluartes da história das quatro matriarcas do carnaval carioca, chegamos ao sincrético ápice de uma escola de samba quando o assunto é louvação – seu padroeiro. Poucos são os elementos aos quais são ofertados tanta devoção e respeito como os santos e orixás que regem e protegem uma agremiação. Por isso, lançaremos quatro textos que passearão pelas histórias desses seres divinos e por alguns pontos dessa relação litúrgica, sintetizando perfeitamente o binômio sacro-profano que é o carnaval.

Seja pela levada do ponto de chamada do orixá que influencia a batida da bateria, seja pela emoção que toma conta ao cantar o samba-exaltação à agremiação e ao padroeiro no esquenta, a série está no ar. É nossa missão sempre relembrar que existe algo muito além daquilo que circula entre o céu, a terra e o sagrado solo da quadra de uma escola de samba, ou a Marquês de Sapucaí. Vamos conhecer mais dos Padroeiros - toda quarta de julho, aqui no Carnavalize. Hoje, o último texto!


Foto: Riotur/Fernando Grilli | Arte: Vítor Melo/Carnavalize

Texto: Vítor Melo
Revisão: Felipe Tinoco

A pedreira e a fundação

Conta a história iorubá que Xangô foi o quarto alafim de Oió – título de obá (rei) do império iorubano, hoje localizado no que se entende por Nigéria. Detentor do controle dos raios e de tempestades, era de cima da pedreira, região na qual geograficamente se estabelecia o reino criado por Odudua, avô do nosso padroeiro de hoje, que, durante curto período de sete anos, ele comandou a ascensão do maior império iorubano já visto. Embora conhecido pela tirania e pela violência, o orixá do fogo sempre fez prevalecer sua pesada mão de justiça e sabedoria entre seus súditos. Segundo a tradição oral africana, Xangô teria sido destituído do cargo de majestade e fora obrigado a se suicidar na floresta após ser causador de um grande incêndio que destruiu o reino de Oió, após testar uma de suas façanhas (o fogo). Tendo cumprido a pena, nunca foram encontrados restos mortais do antigo obá, sugerindo que os deuses haviam o transformado em orixá. Na medida em que o tempo passou, a cada relampejada ou trovão que rasgasse o céu, existia a certeza por parte do povo de lá que Xangô permanecia vivo, protegendo e zelando por eles, de cima da pedreira de onde tudo se vê.

Primeiramente conhecido como Morro dos Trapicheiros, o morro do Salgueiro herdou o nome de um cafeicultor da região, quem havia construído alguns barracões para pessoas escravizadas. Domingos Alves Salgueiro deu início, de forma ainda lenta, à povoação daquele espaço. Esse movimento foi intensificado após a “abolição” da escravatura, quando recém-libertos constituíram famílias, construíram casas e contribuíram para o crescimento da comunidade do Salgueiro. Nos idos de 1940, uma nova leva de migrantes de outros estados e, notadamente, de regiões interiores da própria cidade deu a tônica do berço fértil de mistura e potência cultural que o morro já demonstrava possuir. Como o carnaval é uma festa essencialmente de resistência, mesmo diante de todas as adversidades, o festejo de momo era religiosamente comemorado pelos moradores daquela região. À época ainda existiam três blocos que animavam a moçada e já detinham uma relação estreitíssima com o quarto rei de Oió, fundamental pra escola que viria surgir e para o fato dela ser abordada nessa série. Embora competissem entre si, os grupos carnavalescos Azul e Branco, Unidos do Salgueiro (a azul e rosa) e Depois Eu Digo (a verde e branco) dificilmente conseguiam boas colocações nos campeonatos locais.


Djalma Sabiá, último dos fundadores salgueirenses vivo, como "obá" no carnaval 2019. Foto: Riotur/Dhavid Normando.


Inicialmente, o Unidos do Salgueiro resistiu à junção dos outros dois grupos, mas logo depois se rendeu ao sinérgico branco e encarnado do recém-constituído Acadêmicos do Salgueiro, fundado em 05 de março de 1953. Sendo fruto de uma comunidade localizada em uma pedreira (onde reside Xangô), a escola tinha o primeiro enlace litúrgico com seu padroeiro e dava indício da relação que só foi fortificada durante os anos. Embora existam pessoas que acreditem em coincidências - o que não é o meu caso -, o Salgueiro, em sua carta de fundação, definiu suas cores como vermelho e branco. Juntas do marrom, formam as cores do orixá. A escolha dos fundadores, entretanto, era baseada na tentativa de distanciamento das combinações cromáticas já em voga nos blocos anteriores. 

Se para um bom entendedor, um pingo é letra, estava mais explícito do que nunca a relação dada! Os destinos do orixá da justiça e da escola tijucana foram cruzados mesmo antes que a segunda existisse. Dois dos fatores que ligariam ainda mais diretamente a escola ao seu padroeiro e fixariam essa relação do patronato espiritual da Academia do Samba em nosso imaginário coletivo vieram em 1969.


O Xangô do Salgueiro

Entra na história a figura de Júlio Expedito Machado Coelho, mais conhecido como Professor Júlio, destaque de luxo que desfilaria no Salgueiro até 2007, ano de seu falecimento. Foi em 1969, entretanto, que ele alçaria seu maior voo e herdaria uma herança que carregou até “Candaces”. No enredo “Bahia de todos os deuses”, assinado pela dupla imbatível Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues, o professor desfilou pela primeira vez com as vestes de um orixá, conforme pedido de sua mãe de santo. O escolhido obviamente foi o padroeiro da escola, Xangô, sendo rapidamente acatada pelos carnavalescos. 

Ao final da apresentação, com tamanho excitamento gerado por ela, o carnavalesco da voz de trovão virou para Júlio e sentenciou: “Você é nosso Xangô! Xangô do Salgueiro!”. Com o novo epíteto, agora Xangô do Salgueiro desfilou sempre em representação ao patrono espiritual da agremiação. A fator de curiosidade, essa “obrigatoriedade” gerou poucas e boas, como conta cirurgicamente Leonardo Bruno em Explode, coração: histórias do Salgueiro, livro da coleção Cadernos de Samba. Em 1970, com o enredo versando sobre a Praça Onze, o destaque ganhou posição ao lado de Tia Ciata, já que Xangô era seu orixá de cabeça, conforme descobriram na pesquisa do tema.

Júlio Machado, Xangô do Salgueiro, desfilando no carnaval de 1995. Foto: Wigder Frota.

Já em 1997, com o enredo “De poeta, carnavalesco e louco, todo mundo tem um pouco”, de Mário Borrielo, que brincava com a loucura, o encaixe foi mais arrojado. Júlio desfilou ao lado de uma representação de Dona Maria (a Louca). O porquê disso se dá pela versão de um batismo da figura em águas africanas, ganhando a proteção do orixá, antes de chegar ao Brasil. Loucura ou não, a veracidade não é o aspecto mais relevante do causo; importante era Xangô desfilar – e isso ele felizmente sempre fez. Com essa onipresença física (e espiritual), o professor Júlio foi sem dúvidas um dos responsáveis pela aproximação da relação Xangô-Salgueiro do imaginário coletivo e pela manutenção da figura do patrono como um dos principais símbolos da agremiação. 


Tambor

Chegamos, então, ao segundo elemento relacionado ao desfile que deu ao morro salgueirense o primeiro título: o furioso ritmo da bateria tijucana. Embasada pelos contos dos mais experientes salgueirenses, diz a lenda que em 1969 se ouviu pela primeira vez o emular do alujá, toque para Xangô, bem na cabeça do samba, após a volta do refrão principal. É justamente a passagem em que evoca a Bahia, um dos principais berços da ancestralidade que percorre esse solo tupiniquim.

“Bahia, os meus olhos estão brilhando/Meu coração palpitando/De tanta felicidade”

Embora a bateria salgueirense se inspire primordialmente na levada de partido-alto das bandas dos bambas da Estácio de Sá, foi nos tambores vermelhos e brancos que o batuque sincopado recebeu a codificação para Xangô. A necessidade do flerte rítmico com o padroeiro é coisa séria e caracteriza os ritmistas do Salgueiro até hoje. Fato semelhante ocorre na Mocidade, conforme o texto da semana retrasada (“Batuques ao caçador, o agueré independente”, leia aqui). A Furiosa, como é conhecida carnaval afora, recebeu esse apelido exatamente pela ferocidade com que tocava (e toca), diferenciando-a das outras baterias, tendo base no alujá para o orixá padroeiro. 

Um dos diretores da bateria Furiosa durante o carnaval de 2019. Foto: Richard Santos/Riotur.


Mães do samba

Partindo pra outro segmento... Em uma ligação com a Profa. Dra. Helena Theodoro, conhecedora dos caminhos do sagrado, ativista defensora das causas étnicas-raciais, salgueirense e curadora de "Resistência", enredo do Torrão Amado para o próximo carnaval, pude mergulhar um pouco mais profundamente pela simbologia que as representações das mães africanas carregam e pela representação das baianas salgueirenses, assim como perceber minúcias cotidianas que muito nos dizem, independentemente de nossos olhos não enxergarem. As grandes mães ancestrais das escolas de samba carregam em seus conhecimentos a responsabilidade de serem símbolos das cabeças brancas coroadas pela experiência, pela carga ancestral e principalmente pelo poder da sabedoria.

No Salgueiro, portanto, são elas as únicas responsáveis (e capazes) de perpetuar a manutenção dos fazeres ancestrais, de repassar o conhecimento que adquiriram até hoje e de guiar os rituais e as obrigações necessárias quando a escola aborda divindades africanas em seus enredos, como no próprio "Xangô", em 2019. Helena também afirmou que as baianas carregam em suas vestimentas o poder de criar, transformar e perpetuar ensinamentos que são carregados em seus tabuleiros pelos saberes e sabores, refletidos inclusive nas comidas vendidas em torno da quadra. São diferentes os conteúdos das barraquinhas antes de ensaios, disputas e demais eventos de coirmãs apadrinhadas por Ogum ou Oxóssi, por exemplo. Carregadas dessa liturgia entre escola e padroeiro, é comum achar na Silva Telles a comercialização de alimentos que também são comumente oferecidos a Xangô, como pratos com camarões, azeite de dendê e muitas velas nas cores de seu pavilhão.  Essa energia e esse poder vital que os orixás e os guias espirituais carregam também funcionam dessa forma, trazendo para perto de si, em locais que seu culto esteja presente, símbolos e mensageiros de sua falange.


"Samba, corre gira, gira pra Xangô"

O enredo da vida de cada salgueirense ocorreu em 2019! Esperada por muito tempo, a homenagem ao padroeiro finalmente aconteceu no carnaval do ano passado. Em um cenário pra lá de conturbado politicamente, diga-se de passagem, mas aconteceu. Corre em boca nem tão miúda assim que a escolha do tema sobre Xangô foi uma das últimas táticas tentadas por Regina Celi, ex-presidente salgueirense, para criar certa capilaridade e gerar uma adesão da comunidade da escola com ela. O imbróglio foi parar na justiça, estendeu-se por quase 6 meses e nitidamente afetou o cronograma do desfile da escola até quando a nova gestão, encabeçada pelo presidente André Vaz, assumiu. 


Visão geral da apresentação da alvirrubra de 2019. Foto: Wigder Frota.

O Salgueiro recebeu uma safra à altura de seu padroeiro, gerando um dos sambas mais ouvidos e repercutidos do pré-carnaval, com refrão forte e melodia potente. O momento da escolha, em especial, foi bastante emocionante. A quadra pulsava, os segmentos salgueirenses se abraçavam nitidamente emocionados e o ambiente contagiava até o menos satisfeito com a composição escolhida.  O desfile foi empolgante e emocionante, embora apresentasse algumas irregularidades no conjunto visual e alguns senões na narrativa escolhida, como o pouco destaque dado a Oiá, Oxum e Iansã, mulheres de Xangô citadas no samba. A garra do chão salgueirense e a emoção do componente da vermelho e branco tijucana em homenagear aquele que os protegem foram suficientes pra driblar os pontos negativos, gerando um ambiente simbólico e competitivo. O Salgueiro ficou na quinta posição, suficiente para voltar ao Sábado das Campeãs pelo décimo primeiro ano consecutivo.

Cruzo

Utilizo-me de muitas referências de Luiz Antonio Simas e lá vai mais uma: cruzo. Em detrimento do conceito de sincretismo, acredito que “cruzo”, além de tornar um campo mais amplo pro entendimento de tudo isso que existe entre o céu e a terra, é uma forma mais correta de se entender e explicar essa interseção entre energias, lendas e crenças de diferentes religiões e dogmas. Não existe meios de se contar histórias, fermentadas em terras brasileiras, que bebem do poço da fertilidade de nossa cultura e raízes, sem falar dessa mistura. Muito se sabe da relação Salgueiro-Xangô e também do costume das escolas de samba pela cultura de aglutinação, da não excludência, de reverenciarem padroeiros de diferentes origens, inclusive católica. Portela e Nossa Senhora da Conceição; Paraíso do Tuiuti e São Sebastião; Império Serrano e Estácio de Sá e São Jorge... Tantos exemplos!

Com a Academia do Samba não é diferente. Essa relação, pasmem, vem antes mesmo do que sua ligação com o rei do império iorubano. Voltando ao segundo parágrafo do texto, chegamos novamente ao Morro dos Trapicheiros. Haroldo Costa destrincha em seu livro Salgueiro: Academia do Samba que a procissão a São Sebastião, perpetuada até os dias de hoje no morro, é herança do legado desse sarapatel religioso do processo de ocupação do morro. Esse sarapatel é ainda mais reverberado na propagação dos saberes culinários, durante as festividades religiosas e na disseminação de danças e ritmos como jongo, caxambu, folia de reis, etc. 

Registro da procissão de São Sebastião no morro do Salgueiro.
Foto: Flickr ArqRio/Arquidiocese do Rio de Janeiro.

“O jongo e o caxambu vamos rodar/Salgueirar vem de criança/O centenário não se apagará”. Toda essa relação e toda essa devoção se dá até hoje pela manutenção da presença de uma capela para o santo no alto do morro, como vestígios das décadas que precediam o ano da fundação do Salgueiro. As comemorações do dia 20 de janeiro são fortemente preconizadas anualmente pela comunidade. A decoração do campo o qual abriga o principal festejo sé dá por muitas velas, bandeirinhas, barracas e tudo mais que compõe o visual de um verdadeiro arraiá em louvação ao padroeiro católico da agremiação. A cereja do bolo dessa relação íntima se dá por uma personagem verde e rosa, a querida Alcione. O clássico “Academia do Samba”, imortalizado na voz da nossa Marrom, sintetiza e confirma o “apadrinhamento” de forma poética logo de cara, com os assertivos e belos primeiros versos: “Salgueiro, ô, salgueiro/Teu padroeiro é o próprio São Sebastião/Estende o manto sobre o Rio de Janeiro”. 

Ainda há um último elemento querendo entrar nesse balaio. No dia da fundação da escola geralmente ocorre uma missa na quadra, ministrada pelo padre Wagner Toledo, ilustre torcedor salgueirense e personificação da representação sacro-profana, sendo amante das escolas de samba e torcedor apaixonado e desfilante assíduo da Academia. Durante a cerimônia, há a comum presença de muitos componentes devotos de São Sebastião, além de toda a simbologia contida no olhar mais atento da grande imagem do santo que a escola mantém em sua quadra. Esse elemento, associado com a figura do detentor do Oxé que também se coloca presente no terreiro salgueirense, vigia os ensaios e protege o bom prosseguimento da vida e do dia a dia dos becos, vielas e frechas do Oió tijucano. Suas presenças encantam e muito contam sobre o misticismo e magia do cotidiano carioca, sobre o pertencimento dos saberes e caminhos ancestrais, preservando por meio desses signos a memória e a história do Acadêmicos do Salgueiro, uma matriarca e grande protagonista dessa cachaça que nos move chamada carnaval. Saravá!


Agradecimentos: à interminável fonte de conhecimento conhecida por Helena Theodoro, pela ligação de quase 1h sem prévio aviso e toda a sabedoria compartilhada generosamente comigo; ao jornalista e escritor Leonardo Bruno, autor do primeiro livro que obtive sobre a história do Torrão Amado, por também ter me doado parte do seu tempo para conversarmos um pouco; e a Eduardo Pinto, um dos atuais diretores do eminente departamento cultural da Academia do Samba, pelo contato propriamente estabelecido e também todo o tempo e a atenção dispensados.

Referências bibliográficas: A tese de Doutorado “O G.R.E.S. Acadêmicos do Salgueiro e as representações do negro nos desfiles das escolas de sambas nos anos 1960”, de Guilherme José Motta Faria; o livro “Explode, Coração: Salgueiro”, de Leonardo Bruno, coleção Cadernos de Samba, publicado pela VersoBrasil; o livro “Mitologia dos Orixás”, de Reginaldo Prandi, publicado pela Companhia das Letras; e o livro “Salgueiro: Academia do Samba”, de Haroldo Costa, publicado pela Record.

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Sendo a Série Padroeiros um desejo meu de pesquisa de longa data, sinto-me já um pouco órfão dessas quatro semanas pesquisando e buscando conhecimentos sobre essa relação litúrgica entre as escolas de sambas e seus padroeiros que sempre me fascinaram. Começamos pela relação entre o Paraíso do Tuiuti e São Sebastião e Oxóssi. Nesse primeiro texto, o enfoque foi mais direcionado ao desfile de 2020 e na simbologia contida no morro do Tuiuti (leia aqui). No segundo texto, desembarcamos na Vila Vintém. A coluna abordou a influência do agueré, toque de Oxóssi, na construção identitária da bateria Não Existe Mais Quente. Para traçar essa história, utilizamos brevemente a genialidade e o teor ancestral do Mestre André como nosso fio condutor (leia aqui). Já no penúltimo texto, a relação entre o imperiano fiel que confia na lança do santo guerreiro foi o assunto debatido. Passeamos pela procissão e pela alvorada de São Jorge que ocorre pelas bandas de Madureira religiosamente todo dia 23 de abril e terminamos o texto nas aparições de São Jorge nos enredos do Império Serrano (leia aqui). E, no de hoje, abordamos a principal escola quando se trata de relação e manutenção desse símbolo espiritual: o Salgueiro. 




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