#Colablize: Mangueira 2020, Jesus da gente e o amor em tempos de pandemia
Lembro, ainda hoje, da primeira vez que chorei ouvindo um samba. Foi na minha pré-adolescência e escutei, sem muita atenção, Beth Carvalho cantando “O Meu Guri”, do Chico Buarque. Eu não entendi muito bem o que tinha acontecido. Sem smartphone ou mesmo internet em casa, tive que esperar encontrar o CD com essa gravação, ler a letra e entender a emoção que havia tomado conta de mim naquele momento. Nesse dia, de uma só vez, eu virei fã de Beth, de Chico e entendi que o amor podia estar em espaços muito desconhecidos por nós - numa letra de samba ou no coração de uma mãe que vê seu filho morto, “com venda nos olhos e de papo pro ar”, em uma capa de jornal. Eu, que nascido e criado em São Cristóvão, já era mangueirense, entendi também logo depois que o amor podia estar também no Carnaval e na minha relação com o mundo do samba (e de suas escolas).
Depois disso, chorei ouvindo muitos outros sambas e vendo muitos desfiles. O último deles foi em 2019, com a aula de (outras) história(s) do Brasil que a Mangueira levou para a Sapucaí e para todo o mundo. Foi um desfile arrebatador. A pista e a arquibancada cantavam o samba a plenos pulmões e se emocionavam a cada segmento da escola, a cada carro, a cada ala, a cada paradinha da bateria. Foi uma experiência para nunca esquecer.
E por que estou falando disso agora? Primeiro, porque, em tempos pandêmicos, em que, em um país como o nosso, o absurdo vira cotidiano, a morte viral banal e o ódio parece reinar sobre o amor, faz bem relembrar momentos como esse. Segundo, porque em 2020 eu não estive no Sambódromo e mal sabia eu, naquele momento, o quanto iria me arrepender dessa decisão. O Carnaval de 2020 foi a última alegria dessa nação, o último respiro antes de sermos todos internados, sem qualquer tipo de atenção de quem deveria zelar por nós, em um completo estado de abandono e desespero. Nem sequer a certeza de todo ano, de que sempre podemos “nos guardar para quando o Carnaval chegar” (“grande Chico iluminado!”), não a temos.
Está muito difícil pensar em Carnaval (e imagino que isso não valha apenas para mim…). Não por causa do discurso fácil de que há coisas mais importantes do que o Carnaval para se pensar em um momento como esse (ou para muitos: em qualquer momento de qualquer ano), mas justamente pela razão contrária: pela importância que o Carnaval tem em nossa cidade, em nosso país, na construção de nosso povo, da consciência crítica de nosso povo e na possibilidade que todos nós temos de pensar nossa existência, de maneiras diversas, quando pensamos nele e em tudo que o atravessa, como o samba por exemplo.
Como eu disse, em 2020, eu não estava na Sapucaí. Cheguei de uma viagem em plena noite do domingo de Carnaval. Entre malas e empurrões, vi o desfile da Mangueira pelo celular. Como para mim, o Carnaval, as escolas de samba e a Mangueira (...e a Paraíso do Tuiuti, mas aí é conversa para outra história…) são representações genuínas do amor, estava muito ansioso para assisti-la. Claro que o arrebatamento de 2019 e o lindo samba de 2020 contaram muito para ampliar esta expectativa (“Mangueira, samba, teu samba é uma reza pela força que ele tem”).
Visão geral do desfile da Mangueira em 2019. Foto: RIOTOUR. |
Entretanto, alguma coisa não aconteceu enquanto eu via aquele desfile. Me decepcionei (desrespeitando, propositadamente, de uma só vez, as regras de colocação pronominal e as regras de torcida fiel). Eu, que esperava explosão igual ou maior à de 2019, que esperava ainda mais uma identificação geral do público que estivesse na Sapucaí ou em suas casas ou nas ruas da cidade, acabei achando o desfile pouco contagiante, o samba pouco cantado, a escola escura demais e a narrativa excessivamente clássica. No fim daquela noite (ou melhor, na manhã do dia seguinte, ainda antes de dormir), não me contive e quis ver o que outras pessoas haviam achado, já que minhas impressões poderiam ser derivadas do fato de eu ter visto o desfile em uma tela de celular na confusão de um retorno de viagem.
Fuçando páginas de jornais, postagens no Twitter e grupos de Facebook, vi que a opinião pública e a dos especialistas foi semelhante. Ninguém havia entendido como o samba mais cantado no pré-carnaval não aconteceu na Avenida. Depois de ler muito sobre o que tinha acontecido - e as muitas explicações para isso (que iam desde o horário do desfile até o tamanho das fantasias), quis ver de novo. Dessa vez, sem a expectativa. Na terça-feira de Carnaval, vi novamente o desfile da Mangueira. E foi diferente. Preciso dizer aqui (e é difícil dizer isso agora, com 2020 inteiro nas costas) que fiquei profundamente emocionado com o que havia visto. Só que a emoção não veio com o desfile, mas com as entrevistas depois dele - no tão complicado estúdio da Globo. Evelyn, Alcione, Leandro, os componentes da escola... (Que falta fez Beth!). Todos iam falando e mandando, no discurso, a letra que a Mangueira trouxe para a Avenida e para o Brasil 2019/2020. Aí acho que entendi. Dessa vez, “deu pra ouvir o desabafo sincopado da cidade”.
Pensando (e sentindo ao pensar), entendi que talvez tivesse sido essa a proposta da escola. Sem querer ser a voz da razão, mas “abraçando a verdade” (que “nos fará livres”), a Mangueira fez pensar. A mim, a todos e, principalmente, à sua comunidade. Já estava lá na letra, só não viu quem não quis: “Favela, pega a visão! Não tem futuro sem partilha nem messias de arma na mão”. Não foi o Carnaval da explosão, nem poderia ser. Para a gente, que está sempre se guardando para quando o Carnaval chegar, é difícil estar nele e continuar “só vendo, sabendo, sentindo, escutando” como nos diz Chico sobre o que fazemos no resto do ano. A Mangueira em 2020 nos fez continuar assim, mas nos deixou também falar: muito mais fora da Avenida do que dentro dela.
Ano passado, em 2019, foi diferente: Leandro Vieira (e preciso nomeá-lo dentro deste texto, porque seu mérito nessa construção é inegável) colocou na Avenida o que esperávamos há muito tempo. Todos nós, em alguma medida, nos fizemos ouvir através do que a Mangueira disse. Na luta, nos encontramos, ouvimos as Marias, Mahins, Marielles, malês e vimos os Brasis que se fazem de Lecis, Jamelões e de multidões verde e rosa.
Visão geral do desfile da Mangueira em 2020. Foto: Wigder Frota. |
Neste ano, 2020, foi diferente. Leandro não construiu uma história para que a Mangueira desse voz ao que queríamos dizer. Ele nos provocou a pensar sobre algo que não estava (e ainda não está) no nosso inconsciente coletivo. Ao contrário, nos fez romper com ele. A gente esperava ver outro Jesus na Avenida, assim como vimos outra história em 2019 (e, aqui, preciso abrir parênteses sobre uma conversa necessária que precisamos ter - em outra hora, talvez - sobre sambas incríveis que trazem narrativas diferentes das do enredo que visualmente se constrói na Avenida), mas a gente não viu outro Jesus. A gente viu o mesmo Jesus. O mesmo que vemos na Bíblia e sobre o qual aprendemos em aulas de catecismo, em encontros dominicais, nos filmes de Hollywood, nas conversas familiares, nos programas religiosos de TV ou de rádio. Esse sempre foi o “Jesus da gente”. A gente é que não sabia disso. Não era preciso inventar outro.
Leandro Vieira fez a genial construção de contar a mesma história de sempre, mudando pontualmente as imagens sobre ela. E sobre imagens, todos nós já sabemos, Leandro Vieira entende muito. Em 2020, não tivemos, na Mangueira, o mesmo festival de imagens de impacto que vimos em 2019, mas tivemos A imagem do desfile, que é também A imagem do Carnaval e (depois de tudo que vivemos até aqui, quero arriscar dizer) A imagem do ano: em meio a Jesus em diversas formas (mulher, índio, raivoso, bebê…), aparece o nosso Jesus, o Jesus da gente, um menino pobre, negro, tatuado, de cabelo platinado e bermuda tactel. Um Jesus, que é tomado por bandido só por ser quem ele é, ou quem ele quer ser.
E aqui não podemos esquecer de quem foi o Jesus deles: o Jesus da Igreja católica, o Jesus que nos colonizou e tentou destruir tudo o que aqui havia e tudo que foi trazido para cá que não fosse como sua face: homem, branco, heterossexual, europeu, cristão… Esse Jesus oficial que nos fez esquecer que o verdadeiro Jesus, o que morreu na cruz, não morreu na cruz apenas para nos salvar, mas morreu nela porque foi tomado como bandido ao desafiar os homens de poder e nela morreu sem fundar qualquer religião, pedindo apenas que nos amássemos e que, portanto, enxergássemos o amor mesmo nos espaços desconhecidos por nós, como eu aprendi com Beth e Chico e com a Mangueira lá atrás. E reaprendi em 2020.
E esse reaprendizado foi fundamental para levar 2020 adiante. Vimos, ao longo deste ano, uma pandemia que evidencia e potencializa todas as desigualdades dessa nação, vimos sequências de crimes raciais gravíssimos sendo registrados e denunciados pelas câmeras de quem não aguenta mais se guardar para quando o Carnaval chegar e vimos líderes políticos e religiosos ignorando (ou pior, desdenhando de) tudo isso. Mas vimos também lá no início do ano, que parece agora tão distante, uma imagem que já apontava para tudo isso. Esse menino Jesus na cruz, tomado por bandido, que a Mangueira trouxe, nos fez pensar (e sentir e continuar sentindo…).
Não veio a explosão, mas veio a reflexão. E como todo bom exercício de reflexão, a resposta sempre demora a acontecer. Lá na terça-feira de Carnaval, eu já havia entendido isso. E a resposta pode demorar muito ainda para chegar, se é que chega. Como resultado da reflexão, a emoção vem ainda depois. Em mim, ela veio logo em seguida, já em um segundo olhar. Não sei dizer se a Mangueira deveria ser campeã, mas posso dizer que, junto com algumas outras, ela mereceria o título pelo que o enredo representou naquele momento. O campeonato não veio, mas o merecimento não se perde com isso. Em um ano de imagens tão fortes (algumas microscópicas), em um ano em que aprendemos (ou deveríamos ter aprendido) a viver através das telas e das janelas, dos enquadres das imagens, a Mangueira trouxe uma das mais simbólicas delas. Simbolismo que se deve ao que ela representou naquele desfile, ao que representa em 2020 e ao que ainda vai representar. “A verdade nos fará livres”, disse a Mangueira, mesmo quando reinam as fake news e, junto com elas, os fake tudo.
Diego Vargas é professor, linguista aplicado, metido a escritor.