Raízes da Garoa: A construção visual - a evolução das fantasias e alegorias paulistanas
Texto: Talitha de Jesus
Revisão: Juliana Yamamoto e Luise Campos
Todas as segundas-feiras de outubro, a série Raízes da Garoa destrincha o Carnaval de São Paulo, desde suas origens no Vale do Anhangabaú e Avenida São João, até a sonoridade dos seus sambas-enredo e bateria, além de outros segmentos importantes: o visual e a dança. O objetivo desta série é explicar as peculiaridades e diferenças que envolvem a folia paulistana e a sua importância para a cidade. Agora que já abordamos a origem da festa e a sonoridade das baterias e samba-enredo, chegou a hora de nos aprofundarmos nos quesitos que enchem os nossos olhos: as fantasias e alegorias, parte essencial do desfile.
Um dos pontos mais incríveis sobre ser um folião é poder fugir da realidade, se transformando em personagem em uma apresentação; mas nem sempre foi assim. Na era dos cordões carnavalescos, os próprios foliões faziam suas fantasias, com poucos recursos financeiros e sempre respeitando as cores da agremiação. No antigo Grupo Carnavalesco Barra Funda, atual Camisa Verde e Branco, por exemplo, os participantes desfilavam com calça branca, camisa verde e chapéu de palha. O uso frequente das cores verde e branca nos festejos influenciou posteriormente no nome da agremiação. O Vai-Vai, outro cordão, tinha predominantemente fantasias em branco e preto na época. Além disso, uma grande preocupação era com os sapatos. Os componentes não desfilavam descalços, pois remetia às memórias da época da escravidão. Dessa forma, o uso dos calçados significava que o negro era liberto, por isso, sempre utilizavam sapatos ou botinas feitas de couro.
A partir da entrada das mulheres nos cordões, no início da década de 1920, as fantasias começaram a ser feitas com maior cuidado. Tanto as masculinas quanto as femininas eram sempre muito elegantes e cobriam a maior parte do corpo. Quando as escolas passaram a desfilar com um enredo, as fantasias acabaram se modificando, pois necessitavam contar a história desenvolvida na Avenida e, assim, começaram ser criados os grupos de fantasias iguais, as denominadas “alas”, aumentando o nível de responsabilidade.
Com a oficialização dos desfiles em São Paulo pela prefeitura e a chegada dos carnavalescos, em meados de 1970, o processo de cada componente fazer sua fantasia por muitas vezes em suas casas deu espaço para locais específicos para a confecção das indumentárias. Além disso, o trabalho para fazer uma fantasia tornou-se uma cadeia produtiva, envolvendo carnavalesco, modelistas, ferreiros, costureiras, aderecistas e chapeleiros. Através da evolução do Carnaval, até a maneira como as vestimentas são apresentadas mudou: na maioria das vezes, o carnavalesco as desenha, faz o projeto sair do papel e se tornar um protótipo, que é apresentado em uma festa muito esperada pela comunidade, o ‘’Lançamento dos Pilotos”.
A Unidos do Peruche foi uma das pioneiras a introduzir fantasias mais pesadas e elaboradas para os componentes, quando o já consagrado carnavalesco Joãosinho Trinta estreou pela escola. Em razão do sucesso dessa “inovação” trazida para o carnaval paulistano, outras escolas passaram a adotar o “modelo” a partir da década de 1990, em busca de notas melhores, momento em que as fantasias se tornaram mais luxuosas e pesadas.
Em 1988, a Unidos do Peruche muda a história e o conceito do Carnaval Paulistano.
Ala da bateria com fantasias. (Foto: Museu dos eventos – Anhembi Parque)
Ala da bateria com fantasias. (Foto: Museu dos eventos – Anhembi Parque)
Desde então, o quesito vem evoluindo, chegando aos padrões que vemos hoje. Muito diferente dos tempos dos cordões, agora as fantasias contêm chapéus, costeiros, acessórios e adereços de mão que envolvem muita criatividade e um significado importante dentro do enredo, além da diversidade de materiais como: palha, franjas, pedrarias, penas, espelhos, tecidos, galões etc.
Segundo o manual do julgador do Carnaval paulistano, que tem suas peculiaridades em relação ao carioca, no quesito fantasia é analisada a uniformidade das indumentárias de acordo com a pasta que contém suas fotos ou desenhos. Essa “famosa” pasta, muito presente nas justificativas dos jurados, possui todas as informações do desfile que será apresentado na Avenida. Todas os figurinos precisam estar nesse compêndio e serem reproduzidos exatamente como foi mostrado. Fora isso, também são julgados o acabamento, verificando-se possíveis problemas de finalização da indumentária, como tecidos rasgados ou adereços quebrados, além da realização, em que se avalia se as fantasias apresentam variações de formas, cores e adereços, ainda que mantendo sua qualidade. As fantasias da comissão de frente, casal de mestre-sala e porta-bandeira, componentes das alegorias, mestre e diretores de bateria e equipe técnica não entram no julgamento do quesito.
Agora... e os carros alegóricos? Aqueles artefatos grandiosos, cheios de elementos e cores, esculturas com movimento que nós amamos e as diversas composições que lhe dão vida? Em São Paulo, a primeira escola a utilizar os carros foi a Nenê de Vila Matilde, em 1956. Eram pequenas alegorias de madeira e uma delas tinha a escultura de um livro em que se lia ‘’Casa Grande e Senzala’’, título do enredo que consagrou a escola campeã naquele ano. Já as alegorias animadas (com movimentos), quem introduziu foi a Unidos do Peruche, em 1962, com um enredo sobre Castro Alves. O responsável por essas alegorias foi o carnavalesco Benedito Lobo, que também era compositor. Com a oficialização dos desfiles em 1968, as agremiações começaram a receber uma verba maior da prefeitura, e assim, começaram a produzir alegorias mais luxuosas. Naquela época, os carros eram todos feitos de madeira e coberto por tecidos ou papéis. O Vai-Vai, em 1969, construiu uma alegoria representando uma igreja barroca mineira, para ilustrar o enredo que homenageou Aleijadinho.
Ao longo dos anos, com o crescimento da festa, os carros se tornaram maiores e mais duradouros. O que antes era feito somente de madeira, agora, além dela, contém eixos de caminhões, ferragem e rodas, sem contar as esculturas e demais elementos. Além das transformações na estrutura, as alegorias também passaram por transformações estéticas.
Alegoria da Rosas de Ouro em 1984
(Foto: SASP Carnaval)
Nos anos 1990, houve uma grande mudança nos carros, que começaram a ficar ainda maiores, muito pela inauguração do Sambódromo do Anhembi, que tinha uma pista maior e mais ampla que a Avenida Tiradentes. Ademais, as escolas começaram a “competir” entre si para ver qual traria o maior carro alegórico para a Avenida. O modelo de alegorias das escolas cariocas e a vinda dos profissionais do Festival de Parintins, que iniciaram a era dos carros articulados com movimentos, influenciaram e deram um novo significado a essas peças fundamentais num desfile.
Nos anos 2000, uma mudança ainda maior na estética das alegorias veio com o Império de Casa Verde e seus famosos tigres. A azul e branca marcou e tornou-se referência pelo grande tamanho de seus carros desde que ingressou ao Grupo Especial, em 2003, com esculturas de tigres entre 55 e 60 metros de comprimento, carros extremamente luxuosos e altos, utilizando diferentes tipos de materiais. Após o sucesso de seus desfiles e o bicampeonato em 2005 e 2006, as outras agremiações começaram a investir ainda mais no visual que iriam apresentar na Avenida e, desde então, as alegorias tornaram-se cada vez maiores, tanto em altura quanto em comprimento, e também mais suntuosas.
Alegoria da Império de Casa Verde em 2006. (Foto: Museu Anhembi)
Outro fator que contribuiu para o crescimento foi a construção da Fábrica do Samba, localizada na Zona Norte de São Paulo, próxima ao Sambódromo do Anhembi, onde atualmente há 7 agremiações (Acadêmicos do Tatuapé, Águia de Ouro, Dragões da Real, Gaviões da Fiel, Mancha Verde, Tom Maior e Unidos de Vila Maria). O espaço, que foi criado para a construção dessas peças para o desfile, contribuiu para elevar o nível da competição e, consequentemente, o nível das alegorias. Diferentemente do Rio de Janeiro, onde os carros são levados para Presidente Vargas apenas um dia antes do desfile, na Terra da Garoa, tanto as escolas do Grupo Especial quanto as do Grupo de Acesso I e II levam seus carros desmontados uma semana antes para os espaços destinados a elas: as baias disponibilizadas na concentração e dispersão do Sambódromo e no terreno que se encontra ao lado da dispersão. Na semana do Carnaval, os profissionais do barracão se dedicam integralmente para a montagem dos carros e a realização dos últimos ajustes e retoques, fazendo com que as alegorias possam chegar até 14 metros de altura.
No julgamento desse quesito, há três pontos de avaliação: execução, realização e acabamento. Na execução, são avaliados os carros alegóricos e elementos cenográficos através da ideia proposta pela escola. Na realização, julga-se se eles foram confeccionados com variações de formas e cores, sempre verificando se possuem proporção e volumetria. E, no acabamento, é observado se houve cuidado e atenção na confecção e decoração dos carros, apresentando qualidade no material utilizado, de forma original ou luxuosa. Nesse formato de julgamento, no quesito alegoria, não só os carros alegóricos são julgados, mas são avaliados também os destaques, composições e elementos.
Detalhe de uma alegoria da Mocidade Alegre em 2020.
(Foto: Carnavalesco)
Referências bibliográficas:
http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Da%20oficializa%C3%A7%C3%A3o%20ao%20samb%C3%B3dromo.pdf
https://www.bloglogistica.com.br/mercado/a-logistica-dos-desfiles-do-carnaval/amp/
https://sasp.com.br/wp-content/uploads/2020/02/ManualdoJulgadorOFICIAL_2020.pdf