Laroiê! Sete vezes em que Exu baixou no terreiro de Momo
Texto e arte da capa por Vítor Melo
Laroiê!
O historiador Luiz Antonio Simas escreve em seu livro "Pedrinhas Miudinhas: ensaios sobre ruas, aldeias e terreiros" que aquele que não dá valor à palavra de Exu vive a correr o risco de que o Tempo, na missão de nos julgar na Noite Grande, condene-nos como o povo que sacralizou o carro e profanou os rios. Para quem não é propriamente do babado, a "Noite Grande" é a representação mais próxima dos planos terreno e espiritual, acontecendo na madrugada do dia treze de junho, dia de Santo Antônio, figura católica sincretizada nos cultos afro-brasileiros como o orixá protagonista desse texto. As gramáticas do tambor e da avenida muitas vezes são confundidas como se fossem uma só coisa. O sopro embrionário de nossa festa, de fato, foi fecundado nas raízes fincadas pela culturas trazidas dos escravos e que, desde então, germinam de forma frutífera misturando, ressignificando e inserindo novas camadas às faces e às histórias já existentes, dando origem a um sarapatel genuinamente brasileiro.
É normal, portanto, encontrarmos narrativas que associem os enredos sobre orixás e temáticas africanas e afro-brasileiras a todo o período de existência do carnaval. A primeira citação direta a um orixá, entretanto, veio apenas em 1966, aproximadamente 30 anos depois dos primeiros desfiles. O pioneirismo coube a duas escolas, que desfilavam em grupos distintos, mas citaram a dona de todos os oris, Iemanjá: Império Serrano, com o enredo "Glórias e Graças da Bahia", e a São Clemente, levando para seu desfile "Apoteose ao Folclore Brasileiro". Desde então, esse campo fértil temático tem servido como grande berço criativo para os artistas que assinam e pensam os desfiles e enredos das escolas de samba. Sendo o mensageiro dos orixás, não há maneiras de se comunicar com nenhum deles sem passar por Exu. O protagonista de nosso texto já foi evocado diversas vezes nos muitos xirês que abriram avenidas a fora, mas nunca teve um desfile pra chamar de seu. Listaremos hoje 7 vezes em que o dono das encruzilhadas desfilou - e ainda vai desfilar (leia até o final que você vai entender).
É normal, portanto, encontrarmos narrativas que associem os enredos sobre orixás e temáticas africanas e afro-brasileiras a todo o período de existência do carnaval. A primeira citação direta a um orixá, entretanto, veio apenas em 1966, aproximadamente 30 anos depois dos primeiros desfiles. O pioneirismo coube a duas escolas, que desfilavam em grupos distintos, mas citaram a dona de todos os oris, Iemanjá: Império Serrano, com o enredo "Glórias e Graças da Bahia", e a São Clemente, levando para seu desfile "Apoteose ao Folclore Brasileiro". Desde então, esse campo fértil temático tem servido como grande berço criativo para os artistas que assinam e pensam os desfiles e enredos das escolas de samba. Sendo o mensageiro dos orixás, não há maneiras de se comunicar com nenhum deles sem passar por Exu. O protagonista de nosso texto já foi evocado diversas vezes nos muitos xirês que abriram avenidas a fora, mas nunca teve um desfile pra chamar de seu. Listaremos hoje 7 vezes em que o dono das encruzilhadas desfilou - e ainda vai desfilar (leia até o final que você vai entender).
Salgueiro 2016
"A Ópera dos Malandros"
O badalado enredo da Academia do Samba em 2016 foi assinado pelo departamento cultural da agremiação, capitaneado à época por João Gustavo Melo, em parceria com os ex-carnavalescos da escola Renato e Márcia Lage. O tema com a cara e o DNA salgueirenses gerou uma safra de dar inveja e deu à luz um personagem do carnaval carioca, o "malandro batuqueiro". O samba que trazia essa entidade se tornou um hit do pré-carnaval e chegou ao desfile rodeado de expectativas. Chegada a hora H, o Salgueiro apresentou um ótimo desfile, com certa irregularidade no quesito visual, mas com quesitos de chão muito fortes. Logo de início, o protagonista de nosso texto deu as caras e fez questão de abrir o desfile da malandragem de forma muito potente e com toda autoridade.
O Exu da comissão de frente salgueirense no carnaval 2016. Foto: Riotur/Fernando Maia |
A comissão de frente "Ao Cair da Noite..." representa o prenúncio do que estava por vir. "Malandros" e "Rainhas das noites" invadiam a Marquês da Sapucaí com um bailado operístico, dançando com toda a ginga do povo de rua no compasso sedutor das paixões efêmeras representadas na coreografia. Os bailarinos exibiam-se com intensidade e vigor, guiados por uma força mística e pelo sopro vermelho de uma "energia transformadora", de qual saia o senhor das almas. O Exu salgueirense da comissão de Hélio Bejani causava grande alvoroço a aparecer e ainda dialogava de forma muito bela com o primeiro casal de porta-bandeira e mestre-sala da escola, Marcella Alves e Sidclei Santos. Assim que passava a comissão, ele continuava no perímetro visual do juri, saudando o casal e, de certa forma, abrindo também o caminho deles para uma belíssima apresentação. Saravá!
Cubango 2018
"O rei que bordou o mundo"
No primeiro carnaval de Gabriel Haddad e Leonardo em frente ao processo criativo da escola, a dupla optou pelo enredo em homenagem à história e ao legado de Bispo do Rosário, artista visual de grande relevância. Arthur ganhou notoriedade tanto nacionalmente, como fora do Brasil, pela criação com objetos cotidianos da instituição em que viveu internado, após diagnóstico da esquizofrenia-paranoica. A dupla de carnavalescos deu um banho de pesquisa e costurou de forma brilhante a história do homenageado, com muitas camadas, uma narrativa eloquente e uma assinatura única. A figura principal do nosso texto novamente aparece no início do desfile. O enredo, que é um xodó da dupla, estava guardado desde 2012 e foi um belo sonho materializado no solo sagrado da Marquês.
Ele aparece na comissão de frente, dessa vez, de forma muito poética e singela. Coreografada por Sérgio Lobato, a comissão "Senhores do Labirinto" trazia um grupo de bailarinos representando Exu, sendo guiados por uma representação do Bispo, que puxava uma caixa de madeira, na qual mantinha os pergaminhos que virariam a bonita mandala do fim da apresentação. As belíssimas capas de Exu inseridas tematicamente no enredo eram feitas pelo Bispo do Rosário, e viravam o seu próprio manto em um dos atos. Tanto os bailarinos, que representavam Exu, como o "Louco do Tarot", representando Arthur, eram referências a obras da figura principal do enredo - "Capa de Exu" e "Panela de Carvão". A comissão, apesar de ser bem concebida, foi um calcanhar de Aquiles do desfile, apresentando problemas de realização em quase todas as cabines de julgamento.
Os Exus com as capas de retalho, feitas por Arthur Bispo do Rosário do enredo da Cubango. Foto: Riotur/Gabriel Monteiro |
Unidos da Ponte 2019
"Oferendas"
Recém-chegada da Intendente Magalhães, a Unidos da Ponte voltou a Sapucaí depois de 20 anos. Debaixo de uma das maiores chuvas que já assolaram os desfiles das escolas de samba, que insistiu em cair desde o fim da tarde da sexta-feira, a escola optou em seu pré-carnaval por reeditar o clássico dos anais momescos, "Oferendas", samba e enredo que a escola apresentou no carnaval de 1984. Com a missão ingrata de ser a primeira escola de uma sexta-feira, que comumente, é mais fria e vazia do que os outros dias, tinha um abacaxi ainda maior a ser descascado tendo em vista todos os fatores contrários citados. Contrariando as expectativas e amparada principalmente pela capilaridade de seu popular samba, a azul e branco de São João de Meriti apresentou e inaugurou os dias de desfiles de forma bastante agradável (e molhada). Assim como na ópera salgueirense, o papel destaque dado a Exu foi na comissão de frente assinada por Daniel Ferrão e Léo Torres.
Corpo de baile da Unidos da Ponte com o integrante representando o orixá Exu Bará ao fundo. Foto: Riotur/Fernando Grilli |
Com a representação do "Padê", ritual destinado a Exu, com cachaça, farofa de dendê e cantos propícios, para que ele traga bom axé para o desfile e exerça o seu papel de mensageiro entre o terreno e o espiritual, os coreógrafos queriam exatamente limpar os caminhos da escola. "Abrem-se os caminhos! Um culto ancestral se inicia" era o nome da comissão, que contava com os filhos de santo praticando a cerimônia. Com a fluidez da movimentação dos dançarinos, eles representavam também o baile das ruas que se encontram e dos corpos da cidade que circulam - nas encruzilhadas. Além da encenação ritualística, o grupo sintetizava a força e o poder de um famoso rito africano, o Zangbeto, no qual a palha ganha vida, incorporada de um espírito sagrado. A apresentação cumpriu seu papel, não só abrindo os caminhos para uma digna apresentação, mas pavimentando os trilhos da permanência no grupo tão quisto pela escola. Alupô Bará!
Cubango 2019
"Igbá Cubango – A alma das coisas e a arte dos milagres"
Aparecendo pela segunda vez nessa lista, os talentosos Gabriel Haddad e Leonardo Bora continuaram na verde e branco de Niterói e, mais uma vez, não deixaram nada a desejar. O enredo escolhido foi um grande passeio pelas histórias dos objetos de devoção, como santos, terços, imagens, que conectam os seres humanos ao sagrado nas mais diversas religiões. Com mais uma demonstração da facilidade da dupla em transpor sofisticados enredos para límpidas mensagens na avenida, a escola apresentou outro belo espetáculo visual, mas também com uma narrativa muito pujante e um discurso contemporâneo repleto de referências, histórias cruzadas e naturalmente sincretizadas. De fácil resposta e comunicação instintiva com o público pelo teor de cotidiano do tema, a escola nos presenteou com mais um delicioso desfile. Contexto propício para aparição de um certo alguém...
Carro "Acendo vela, peço salvação!", última alegoria da Cubango no belísismo desfile de 2019. Foto: Riotur/Raphael David |
Abertamente inspirado na obra de Oswald de Andrade, "O Rei da Vela", os carnavalescos tomaram posse da narrativa da peça teatral e propuseram um contrapeso crítico aos mercadores da fé. Com uma alegoria repleta de símbolos sincretizados, havia caboclos, malandros, pombogiras, que circundavam uma das mais belas imagens dos desfiles daquele ano, o Cristo-Caboclo, em alusão ao ponto turístico carioca com adereços do caçador da umbanda. Com uma decoração repleta de arruda, comigo-ninguém-pode, espadas de São Jorge, tanto reais, como artificiais, os carnavalescos uniram ícones das religiões afro e aproveitavam para limpar as energias do belo desfile que a escola fazia. Além do discurso protestante sobre aqueles que comercializam objetos religiosos, abusando da fé e dos dogmas dos fiéis, a dupla pedia pela tolerância e um olhar mais cuidadoso ao denunciar os ataques às religiões afro-brasileiras. Complementando esse cenário, a exuberante Samile Cunha vinha ao centro do carro, representando a "Senhora das Ruas", sintetizando a representação de protesto e dando destaque a uma uma figura tão demonizada pelo fundamentalismo religioso. Nunca foi sorte, sempre foi Exu!
Beija-Flor 2020
"Se Essa Rua Fosse Minha"
Depois de um contestado título em 2018 e um desfile que em nada lembra a opulência histórica e a temática densa da Beija-Flor, a escola optou por um desfile que, ainda mesmo com alguns problemas dos dois últimos carnavais, parece ter agradado a comunidade nilopolitana. Com um samba pesado como característico e um refrão principal que evoca o brio da comunidade, a agremiação optou pelo enredo "Se Essa Rua Fosse Minha", que gerou certa controvérsia por seu desenvolvimento. Com o desfile assinado pela dupla de carimbados nomes da festa, Alexandre Louzada e Cid Carvalho, a escola percorria um desenrolar temático desde os primeiros caminhos oriundos dos derretimentos das geleiras até chega à rua mais importante para o povo de Nilópolis: a Marquês de Sapucaí.
Com uma apresentação extremamente teatralizada, o início da comissão se dava numa briga de rua, encenada pelos bailarinos separados em duas gangues rivais. Na mudança de ato, surgem duas "motocicletas humanas", dando espaços a seis carros que formaram um círculo para alguns integrantes tendo em posse um manto rubro-negro. Após breve coreografia, no compasso do samba que fazia a saudação ao orixá, o pano dá vida a Exu. Ele recebe as pombogiras, recém-saídas das carcaças dos carros que formar o espaço delimitado anteriormente. Toda essa movimentação tem um retorno muito rápido e positivo do público e entrega a ideia do consagrado coreógrafo Marcelo Misailidis de solicitar ao Exu da comissão a permissão de iniciar o desfile, pedindo a benção para falar das ruas com uma coreografia repleta de movimentos oriundos do culto afro-brasileiro e da chegada de Exu no terreiro.
Figura principal da comissão, o Exu nilopolitano gerava um retorno instintivo do público a cada aparição. Foto: Riotur/Raphael David |
Grande Rio 2020
"Tatá Londirá – O Canto do Caboclo no Quilombo Caxias"
Tá difícil saber quem aparece mais nessa lista: Exu ou Gabriel Haddad e Leonardo Bora? Brincadeira à parte, elogiar o talento da dupla é chover no molhado. No carnaval de 2020, os carnavalescos assinaram o primeiro desfile na escola caxiense e marcaram, como muitos gostam de chamar, a "refundação" da Grande Rio, além de se consagrarem de fato como eminentes nomes da folia. Com um tema sobre um ícone da história de Caxias, voltando à identidade afro de outrora, era missão fácil identificar no sincero sorriso do componente tricolor a felicidade de estar cantando uma história em que eles se sentiam representados e, sobretudo, tinham orgulho em estar representando. A homenagem a Joãozinho da Gomeia rendeu à escola um dos melhores sambas do ano e a nós, um belíssimo e requintado trabalho de arte, durante o desfile da tricolor da baixada com mais uma aula de pesquisa, estudo e desenvolvimento dos artistas. Dessa vez, a representação de Exu foi no primeiro casal de mestre-sala e porta-bandeira!
O belíssimo primeira casal caxiense no carnaval 2020. Foto: Riotur/Dhavid Normando |
Com suas fantasias em representação ao "Padê de Exu Libertador", Taciana Couto e Daniel Werneck transmitiam a energia do ritual, principalmente, em suas fantasias, mas também em coreografia repleta de nuances da dança feita em terreiros nos momentos de transe e chegada das divindades. O casal representava, portanto, Exu, partindo da premissa de que não há quem faça a energia circular sem ele, tampouco os caminhos abertos. "O girar da bandeira, símbolo maior de qualquer agremiação, e as passadas ligeiras sobre o asfalto sagrado invocam a energia das ruas e o calor das encruzilhadas", definem Bora e Haddad. Os figurinos guardam diversas simbologias e foram concebidos sob a consultoria de Seci Caxi - Mãe Sandra da Gomeia, herdeira do trono de Pai João, de acordo com a queda de búzios. Além disso, a roupa usada pelo mestre-sala relaciona elementos dos chamados Exu Bara e Exu Catiço: cores sugeridas pela líder religiosa e apresentando um minucioso trabalho em búzios e miçangas. Além disso, o capuz de Daniel representava a lâmina que, no rito religioso, corta uma das cabeças de Exu. Já a roupa de Taciana trazia à tona elementos do imaginário das figura tão poderosas e místicas que são as pombogiras. Que aula!
Grande Rio 2021∞
"Fala, Majeté! Sete chaves de Exu"
Em todos as aparições até agora, Exu não assumiu o protagonismo em nenhum dos enredos e desfiles. Esse panorama, entretanto, ainda sem data marcada devido à pandemia do novo Coronavírus, vai acabar. Coroando uma trilogia exuberante da dupla Gabriel Haddad, em que se destaca a onipresença exusíaca mesmo que fossem enredos de campos temáticos distintos, os renovados carnavalescos divulgaram ontem o tema do eventual carnaval do ano que vem em homenagem ao senhor das encruzilhadas. Com um trabalho primoroso do departamento de comunicação da Grande Rio, a escola, desde 17h do dia 12/06, iniciou uma sequência de sete(!) postagens, com "chaves", que fechavam e costuravam a ideia com enigmas em suas legendas. A estratégia comunicativa do anúncio criou o ambiente perfeito nas redes sociais entre nós, amantes de carnaval, e rendeu à agremiação um grande retorno até que o enredo fosse divulgado a meia-noite do dia de hoje. Sendo anunciado, a repercussão foi imediata e levou a escola aos assuntos mais comentados, figurando durante horas nos Trending Topics do Twitter.
O Logo do enredo foi feito pelo design gráfico e compositor, Antônigo Gonzaga. |
A divulgação do enredo nos primeiros minutos do dia de Santo Antônio, sincretizado como Exu, é simbólica. Os artistas revelaram a forma com que buscarão desenvolver o tema e amarrarão o enredo novamente com um fio do condutor legitimamente caxiense, Estamira, figura que vivia no lixo e do lixo e que dizia dali conseguir se conectar com o orixá mensageiro "pelo telefone". Quando Exu se manifesta, ele faz a energia circular e é exatamente essa representação potente que a escola abordará - nas festas, nas ruas, nas encruzilhadas e no carnaval. É louvável a coragem caxiense e dos, agora, meninos de Caxias a levantar essa bandeira e a tentar desconstruir a imagem demonizada dessa figura indispensável à construção identitária do que somos em cadeia nacional para milhares(?) de pessoas nas arquibancadas, frisas e camarotes. Bravo! Contudo, você pode estar se perguntando, "Se o desfile nem ocorreu, como ele pode já ter baixado no terreiro de Momo!?". Exu é energia, circulação de corpos, poder vital - é Mundo! Não há de se falar dele sem autorização, ele já baixou faz tempo e conceberá esse carnaval seja para quando for junto a todos os artistas que participarão desse processo criativo e junto a todos nós que esperaremos avidamente seja para assistir ou desfilar, mas, sobretudo, louvá-lo.
Exu não é diabo!
Mojubá!
1 Comments
Axé! Que venha 2021!!!
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